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Armagedon - Um Mundo em Caos / Final Odyssey de Fernando Athayde dos Santos é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.
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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Um Mundo em Caos - Livro II - Cap. 03

— Vá Miguel, eu sei o que vocês têm de fazer! Salvem o mundo e tragam o Reino dos Céus de volta!!! Eu fui expulso do Paraíso por ter ajudado Lúcifer no começo da revolta e até hoje me arrependo do que fiz! E tudo o que eu mais queria era ter o perdão de Deus e voltar a pisar naquele solo sagrado, pois ninguém sabe o que é ser atormentado por séculos e séculos por um único erro! E se conseguirem, supliquem ao novo Deus que me perdoe! Agora vá!!!

Miguel agarra Rafael nos braços e junto com seus amigos sai correndo dali em direção ao rio Guaíba, local onde o anjo embaixador marcou o encontro.

― Essa sua ideia de lutar sozinho foi a coisa mais estúpida que já ouvi. ― comenta o demônio. ― Se tivesse ficado com os outros, talvez vocês tivessem alguma chance contra mim. Mínima eu diria, mas teriam. Mas só você... Será piada!

― É o que veremos!

Barkaial se arremessa contra o demônio e este salta e lança um de seus machados ― as correntes que prendem o machado ao braço do demônio parecem duplicar seus elos conforme ele vai se distanciando. ― Barkaial cruza as espadas e o machado se choca contra elas produzindo uma onda de faíscas.

― Boa defesa! ― elogia o demônio. ― Até que você continua rápido depois de todos esses séculos de sumiço. ― e brande seus machados de forma ameaçadora e então corta o ar, lançando uma onda de energia brilhante que segue cortando o ar.

Barkaial novamente cruza suas espadas, mas a energia produzida é forte demais e o arremessa contra a parede. Ele se choca contra ela e cai no chão. Ele então agarra suas espadas e se apoia em uma delas.

― Se ficar na defensiva jamais irei derrotá-lo. ― pensa, enquanto encara seu adversário de longe. ― Vamos ver como se sai aquele golpe que Samaael me ensinou.

Barkaial se ergue e então balança suas espadas no ar em sentido horário, formando um circulo de energia. E então ele executa um ataque vertical que corta esse circulo e envia uma onda de energia que atinge todo o ambiente ao redor ― e como uma ventania, arremessa os pedaços de pedras e concretos contra as paredes. ― O demônio é atingido pelo golpe, mas antes de se chocar contra a parede, movimenta seu corpo e flexiona seus pés contra ela e gira no ar caindo em pé no chão.

O som de palmas ecoa ― é o demônio aplaudindo o ataque de Barkaial.

― Vejo que subestimei você um pouco. Vou parar de brincar.

E se lança correndo na direção de Barkaial. O demônio ergue um dos machados e golpeia Barkaial com toda a sua força, mas ele consegue se defender segurando firme sua espada.

― Vou te apresentar o poder dos céus! ― e sua espada brilha de forma diferente e um raio brilhante de eletricidade atinge o demônio em cheio ― e percorre todo seu corpo ―, que é arremessado ao chão. ― Estejam enfim, apresentados. ― e sorri.

O demônio se apoia no chão e então se ergue. Seus machados que haviam ido parar longe de seu corpo, são puxados pelas correntes e voltam às suas mãos.

― Hunf! Uma carta na manga, então. Muito esperto da sua parte me fazendo lutar corpo-a-corpo com você. Caí direitinho na sua armadilha. Mas creio que o meu ataque é melhor!

Uma nuvem nociva de cor violeta circunda Barkaial com uma força sufocante e então se gruda a pele dele, se tornando uma espécie de gosma pegajosa. Barkaial se debate e tira parte da gosma de cima de seu corpo e diz:

― Esse era o seu golpe? Acho que vai ter que melhorá-lo um pouco mais!

O demônio apenas sorri.

Barkaial então cambaleia e uma golfada de sangue é expelida por sua boca.

― Agh! O que você fez comigo?

― Simples, enquanto você me atingia com seu golpe, eu invoquei uma nuvem de gases tóxicos sobre você. ― responde. ― Em outras palavras, te envenenei. E essa sensação que você está sentindo só vai acabar se conseguir me vencer. O que agora se tornou impossível.

E nisso, Barkaial cai de joelhos vomitando sangue.

― Meu corpo parece que está em chamas. ― pensa. ― Cada músculo que eu mexo é como se estivessem rasgando um pedaço de mim. Mas não posso me entregar. ― e se ergue olhando para seu adversário: ― Eu não vou me entregar!

E então sai correndo na direção do demônio.

― Que dor insuportável! Cada pedaço do meu corpo está se rasgando!

A espada de Barkaial começa a brilhar e o demônio pensa:

― De novo aquele ataque... Desta vez não vai funcionar. ― e se lança no ataque.

― Creio que já tem bastante energia na espada. ― pensa Barkaial. ― e então ele ergue uma delas e ataca de longe liberando uma poderosa energia através de sua lâmina.

― Maldito! ― esbraveja o demônio que não consegue se esquivar do ataque.

O ataque energético o atinge e explode em várias ondas menores, fazendo o corpo do demônio ter violentos espasmos. E então essas ondas se transformam em estacas de luzes e perfuram sua pele indo parar dentro de seu corpo. O demônio cai de joelhos no chão com sangue escorrendo de vários pequenos furos em sua pele.

― E-Ele conseguiu me ferir... ― pensa. ― O que há de errado com esse mundo que um simples caído consegue me ferir! ― e então se levanta e olhando para Barkaial, grita: ― Eu sou um Deus, está me ouvindo, caído? Um Deus! ― e lança seus machados.

Mas nisso, ele sente seu corpo formigar e então uma dor lascinante percorre todos seus nervos. Sua concentração é interrompida e os machados caem no chão emitindo um som seco que ecoa pelas ruas. O demônio mais uma vez cai de joelhos no chão e seus olhos estão com um ar de dor.

Barkaial caminha em direção ao demônio e diz:

― Essa dor que está sentindo irá durar todo o combate. E conforme for passando o tempo ficará cada vez mais difícil de suportá-la.

― Nada é difícil de suportar! ― e se ergue do chão. ― Quando você machucou minha pele, você liberou algo que eu só faço em situações extremas. ― fitando Barkaial nos olhos. ― O meu sangue não é comum, nem tão pouco é normal, o que corre por minhas veias é nada mais nada menos que o mais puro veneno do Inferno. ― e seus machados voltam para suas mãos. ― Você assinou sua sentença de morte ao fazer isso.

― Não sei quanto a você, mas eu não assinei nada. ― rebate, e analisa os olhos do demônio. ― E eu diria que você também não.

O demônio pela primeira vez libera uma gargalhada do fundo de sua garganta.

― Em todos esses anos eu nunca me diverti tanto como agora. É difícil eu dizer certas coisas, mas você está sendo um ótimo adversário. O que acha de se juntar a nós novamente?

― Você está me propondo uma aliança? ― pergunta, incrédulo com a proposta que ouviu.

― Belial gostaria de ter alguém como você ao nosso lado.

― Você e seu mestre devem saber que eu nunca me uniria a vocês. Em hipótese alguma eu faria isso.

O demônio já esperava por aquela resposta, mas mesmo assim a fez.

― Lhe entendo. ― e continua, ― Você acredita que viver sua vidinha em paz é o que há de melhor. Mas se você visse a vida deste lado, entenderia porque eu lhe fiz essa proposta.

― Eu não pretendo ver as coisas distorcidas como você vê. Eu luto com um propósito, por um ideal, e nada irá fazer com que eu mude deste caminho. Nada...

― Ok. ― e movimenta os braços. ― Fiz o que estava ao meu alcance para poupar a sua vida, mas já que a rejeitou. Não me resta alternativa senão matá-lo!

O demônio brande o machado e acerta o flanco esquerdo de Barkaial com o lado cego da arma. A violência do ataque faz com que o som de ossos sendo esmigalhados ecoe e Barkaial é jogado ao chão.

Mais um jato de dor lascinante invade o corpo do demônio e ele se sente paralisado.

― Merda! ― pensa. ― Esse verme está brincando comigo?! ― com seu corpo tremendo, mas não pelos espasmos e sim pela raiva que está dominando seus pensamentos. ― Eu vou mostrar pra ele o verdadeiro poder dos demônios de Belial!

Barkaial se ergue do chão com a mão em seu flanco esquerdo.

― Huf... Huf... Que dificuldade para respirar. ― pensa, e sangue invade sua boca. ― Acho que meu pulmão foi perfurado. Pift! ― e cospe sangue. ― Preciso tomar mais cuidado.

― Vamos acabar com isto de uma vez! ― a voz do demônio corta o silêncio.

Barkaial pega sua outra espada no chão e então o demônio salta o mais alto que pode e abre os braços e pernas tomando a forma semelhante à de uma estrela de cinco pontas. Seu corpo emite um brilho violeta e uma estrela surge bem à frente dele.

― Comece a rezar, caído! Ataque da Estrela Negra!

A estrela fica cada vez maior e então Barkaial é engolido por ela. Um surto de gás escurece todo o ambiente e dentro das trevas profundas uma força singular e esmagadora contrai todo o corpo de Barkaial. Ele sente como se seus ossos estivessem sendo quebrados um por um. A dor sentida é impossível de ser descrita com meras palavras. Apenas quem a sente sabe a sua força e profundidade. A estrela vai diminuindo de tamanho e Barkaial é lançado de volta ao chão. Ele sai rolando pelo chão e suas espadas ficam bastante afastadas de suas mãos.

O demônio apenas observa, mas Barkaial permanece inerte, sem esboçar nenhuma reação aparente.

― Enfim acabou. Mas ele conseguiu me dar trabalho. Faziam anos que eu não utilizava essa técnica. ― e mais uma vez seu corpo é invadido por dores lascinantes. ― Agh! Porque eu ainda estou sentindo essa dor?

― P-Porque eu ainda não fui derrotado. ― se erguendo do chão. ― É preciso mais do que isso.

Surpreso, o demônio vira-se para ele.

― Vocês caídos tem essa mania chata de demorarem a morrer. ― e as correntes começam a se movimentar nos braços dele. ― Devia ter permanecido no chão. ― ele segura as correntes e os machados ficam suspensos no ar.

O demônio começa a girar um dos machados pela corrente e o joga em direção a Barkaial. Este salta para trás e o machado se choca contra o chão e o arrebenta, fazendo voar pedaços de concreto pelos ares. E nisso, o outro machado o atinge no ventre e ele é lançado contra uma das pilastras, a destruindo. Pedaços da pilastra caem sobre ele.

― Adoro vocês. Levantam várias vezes apenas para apanharem. Vocês não conseguem evitar isso, certo?

― Agh... ― e um jato de vômito de sangue se espalha pelo chão. ― Estritamente falando, demônio, eu vou te derrotar.

E Barkaial se ergue mais uma vez do chão, retirando de cima de si os pedaços de madeira.

― Essa sua determinação é espantosa. ― fala o demônio. ― Mas de nada adianta contra um adversário como eu.

O demônio avança girando seus dois machados.

Barkaial olha para os lados e avista suas espadas e corre até elas. Ele as junta do chão e já se prepara para o ataque de seu adversário. O demônio avança sobre ele com seus machados girando violentamente. Barkaial segura as espadas em sua frente de forma horizontal e os machados atingem elas, arrancando faíscas. A cada pancada ele sente seu corpo ser empurrado para trás. Então o demônio o ataca lateralmente ― pela direita ― com um dos machados, enquanto o outro o fustiga pela frente. Barkaial tem tempo apenas de movimentar sua espada para o lado e o machado a atinge com tanta força, que a arranca de sua mão. E com um segundo golpe, o machado o atinge na clavícula ― rasgando carne e quebrando ossos ―, enterrando sua lâmina profundamente.

Barkaial solta um urro de dor que se espalha por todas as ruas. Um jato de sangue morno atinge o chão, o pintando. Barkaial cai de joelhos sobre seu próprio sangue.

― Como eu te falei, é impossível me derrotar! ― e puxa seus machados de volta.

A lâmina do machado é arrancada do corpo de Barkaial, deixando seu ferimento exposto ― um profundo sulco, onde é possível ver seus ossos quebrados e músculos rasgados. ― Um espirro de sangue se sucede a retirada do machado e então do ferimento passa a verter sangue sobre sua armadura.

― Parece que seu braço direito ficou inutilizado. ― comenta o demônio. ― Me desculpe por isso, não achei que seria um corte tão profundo. ― sendo irônico.

― Agh... Ugh... D-Deixe sua ironia para outro. ― rebate. ― Posso ter um braço inutilizado, mas o outro ainda funciona perfeitamente.

O demônio passa a caminhar na direção dele e então pára.

― Maldita dor que paralisa o meu corpo! ― esbraveja. ― Preciso me livrar disso!

― Parece que você também está sofrendo com o ataque que utilizei em você... ― fala Barkaial, satisfeito com a condição de seu adversário. ― E vou aproveitar o momento.

Raios elétricos percorrem a espada e então são absorvidos por ela. A espada passa a emitir um brilho azulado e Barkaial se lança sobre o demônio e enterra em seu ventre sua formidável lâmina ― que perfura a armadura e trespassa seu corpo. ― Raios elétricos passam a percorrer o corpo do demônio e o cheiro de carne queimada pode ser sentido. E Barkaial ainda movimenta a espada dentro do ventre de seu adversário, causando mais estrago.

― A dor é desagradável, não? ― pergunta ironicamente. E então puxa de volta sua espada.

Sangue enegrecido e fétido jorra pelo chão e respingos atingem o rosto e corpo de Barkaial.

― Ugh... V-Você foi esperto. Agh... ― e sangue negro é expelido por sua boca. ― Mas eu havia lhe dito antes que cortar meu corpo seria assinar sua sentença de morte. ― e cai de joelhos.

E nisso, orbes virulentas começam a borbulhar do chão e a se espalharem pelo salão ― rapidamente o cobrindo. ― Barkaial dá um longo salto para trás e ao aterrissar sente seu corpo paralisar.

― Esse sangue que espirrou em você... Paralisou seu corpo. ― explica. ― Agora sofra com o meu ataque.

Uma chuva de toxinas mortais passa a cair do céu e atinge tudo o que há nele. O corpo de Barkaial passa a arder e então ele sente sua pele queimar. Ele olha para seus braços e sua pele borbulha, explodindo em bolhas de sangue. De sua boca, uma vertente de sangue molha suas roupas. Barkaial passa a não aguentar o peso de seu corpo e cai silenciosamente. Sua espada atinge o chão liberando um som agudo e metálico que estremece levemente o piso. Ele ainda tenta se mover, mas apenas consegue fazer seus dedos das mãos responderem a seus estímulos. Sangue escorre de seu corpo e por entre as fissuras do chão escorre para a espada, banhando-a de vermelho.

O demônio olha para os céus e excomungando seu adversário, invoca algo utilizando palavras em uma língua desconhecida:

Merksh vitere umi Meteka!

O demônio cai de costas e sangue espirra para todos os lados.

― Você me feriu bastante, mas com esse meteoro... Sua vida chega ao fim.

A espada de Barkaial começa a emitir um brilho azulado e sangue é absorvido por ela. Os céus sobre a cidade começam a ficar carregados de nuvens negras que vão se unindo aos poucos. As nuvens rapidamente vão se tornando agitadas e fortes rajadas de ventos uivam sobre o castelo. De repente, uma grande quantidade de descargas elétricas chovem das nuvens e mais abaixo se unem em um único raio que atinge a espada.

― Parece que você errou o alvo. ― comenta o demônio sorrindo.

A espada é absorvida pelo piso e um terremoto é sentido e o chão do salão é coberto com uma rede de fendas e fissuras. E nisso, um imenso e musculoso humanoide de cor azulada e de longa barba e cabelo ― com seu corpo coberto de inscrições antigas, imensos braceletes e vestindo apenas uma tanga ― surge de um buraco que se forma no chão. O humanoide olha fixamente para o céu e eleva seus braços com as palmas das mãos abertas.

― Um híbrido?! ― exclama o demônio em total pavor. ― Merda! Achei que essa gente nem existisse mais!

O meteoro rasga os céus e raios elétricos percorrem toda a extensão do corpo do humanoide e então com um urro avassalador, ele segura o meteoro com a palma de suas mãos. E olhando fixamente para o demônio diz:

― Eu estava tranquilamente dormindo em minha fortaleza quando fui invocado por meu pai por sua causa. E sabe o que isso significa? Sua aniquilação!

O titânico humanoide enfia seus punhos no meteoro e com um resmungo sem palavras, utiliza-se do meteoro para esmurrar violentamente o demônio incontáveis vezes. As ondas criadas pelos impactos geram inúmeros terremotos que destroem tudo em um raio de um quilometro. Prédios vêm abaixo como se fossem feito de cartas e uma cortina de poeira se forma. Quando a poeira se dissipa, o humanoide está protegendo Barkaial com seu próprio corpo.

E assim como surgiu, o titânico ser desaparece. Mas infelizmente Barkaial não pôde presenciar nada do que aconteceu, ele estava desmaiado. Seu último gesto antes de ficar desacordado foi movimentar os dedos de suas mãos. E mais a frente, encontra-se o corpo do demônio completamente esmigalhado dentro de um profundo buraco.

Longe dali, Miguel e os outros chegam a uma parte lamacenta próxima ao Guaíba e uma estranha ventania carrega consigo sussurros incompreensíveis.

― Vocês ouviram isso? ― pergunta Jennifer.

― Sim. ― responde Miguel. ― Esse sussurro veio junto com o vento.

Gabriel olha para cima e vê uma figura fantasmagórica com aparência humana sobre um galho no alto de uma árvore.

― Olhem para cima! ― avisa a todos, apontando para o galho da árvore.

O ser fantasmagórico esboça um leve movimento e então sua voz é trazida pelos ventos:

— Eu estava à espera de vocês. Eu sou o outro embaixador, mas infelizmente não tenho muito tempo, uma horda de demônios se aproxima rapidamente daqui.

O anjo caminha até Rafael e ao tocá-lo no ombro, o faz acordar imediatamente.

— Quem é você?! — exclama.

— Um embaixador, mas não estou aqui para conversar, apenas vim saber a resposta de vocês. Sim ou não?

E como se fossem uma única pessoa, os três respondem ao mesmo tempo:

— Sim.

— Está feito. — pronuncia o anjo.

E assim todos desparecem dali...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Um Mundo em Caos - Livro II - Cap. 2

             O dia está anoitecendo e uma densa névoa está cobrindo a cidade, a temperatura está na casa dos cinco graus Celsius e a maioria das residências está com suas portas fechadas. E um pouco afastado da cidade, a beira do rio Guaíba, Miguel e Surya conversam.
― Não acha que já está na hora de seguirmos atrás do Cubo de Metatron? ― indaga Surya.
― Não sei. ― responde. ― Há tempos que nem sequer penso nisso. Sem falar que nem temos como nos deslocar pelo mundo. Iremos pagar como?
― Lembre-se que dinheiro nunca foi problema para nós.
― Isso numa época em que podíamos voar e tínhamos a nosso poder angelical para nos defender de eventuais ataques. Agora somos humanos, qualquer ferimento mais grave pode nos levar a morte e o pior, nem sequer sabemos para onde iremos após morrer.
― Provavelmente para o Inferno, é o único lugar que restou.
― Mas eu não acredito que todas as almas vão para lá. Muitos não merecem sequer chegar perto daquele pesadelo.
― E agora que o Lúcifer não é mais o todo poderoso, Belial deve estar dançando pelo Inferno.
― Eu só não entendo porque Deus não pensou em tudo que poderia acontecer com a morte dele e não deixou alguém em seu lugar? Isso é inconcebível!
― Miguel, você sabe muito bem quem deveria assumir o lugar dele.
― Eu sei, mas não havia um plano B? Sempre deve haver um plano B. Sendo onisciente e onipotente, Ele deveria saber muito bem o terror que isso causaria!
― E se isso for um teste? E se for nossa responsabilidade reerguer o Paraíso? Ele pode muito bem ter previsto isso e deixado que nós chegássemos a essa conclusão.
― Uma decisão não muito sábia da parte Dele. Como faremos isso sem o mínimo de poder? Enfrentar exércitos de demônios em tais condições só nos levaria a uma morte prematura.
― Eu não tenho uma resposta para isso, mas deveríamos tentar.
Nisso, a névoa que cobre as margens do rio se torna agitada e uma voz gutural é ouvida:
― Talvez eu tenha...
A névoa se movimenta vindo de todos os cantos e se acumula bem na frente deles e então começa a tomar forma sólida revelando um homem em mantos escuros. Seu cabelo é escuro e seus traços bem delineados caracterizam-no como um ser celeste. Seus olhos são vermelhos como o sangue e penetrantes. Em cada mão ele carrega um machado preso a correntes que se ancoram firmemente nos seus braços, tornando impossível sua remoção. Com o surgimento do ser, a margem do rio se torna extremamente iluminada.
― Quem é você? ― pergunta Surya tomando posição defensiva.
― Eu sou um dos primeiros, me chamo Anael, poucos me conhecem. Mas há meses venho observando vocês e aguardando o momento certo de me aproximar.
― Você está dizendo que é um anjo? ­ ― pergunta Miguel. ― É isto mesmo?
― Exato. ― responde sorrindo. ― Eu fui o terceiro anjo a ser criado e hoje sou um dos embaixadores dos planetas na Terra. Sou o embaixador de Vênus.
Quando ele profere essas palavras, seu manto se rasga revelando uma armadura negra como a morte, adornada com desenhos profanos por toda a sua extensão. As ombreiras de sua armadura lembram crânios humanos em sofrimento. Com isso, ele vira-se de costas para os dois e de dentro do rio puxa um elmo escuro que parece um crânio em desespero e o veste. Esse elmo é levemente aberto na frente, deixando parte de sua boca e nariz aparecerem, além é claro, de seus olhos. Ele então volta sua atenção para os dois ex-celestiais, e seus olhos parecem brilhar das profundezas de seu elmo.
― Não temam essa minha pequena mudança, mas essa armadura é necessária para intimidar os seres impuros que se aproximam. De fato, ela não exprime o meu caráter, fiquem certos disso. E posso ver certo questionamento no rosto de vocês do fato de eu ainda ser um celestial, mas adianto uma coisa, eu não tenho mais ligações com o Paraíso como vocês tinham. Deus nos desligou para no caso de acontecer alguma coisa, podermos fazer algo por aqueles que ficaram vivos. E é o que eu vim fazer.
― O plano B! ― pensa Miguel.
― Realmente eu ia perguntar isso a você. Mas você disse ser um Embaixador? ― indaga Surya. ― Nunca ouvimos falar.
― Somos os responsáveis pela influência dos planetas na vida dos homens. E há tantas coisas que vocês não sabem. Nem tudo o que acontece é ensinado pelo Paraíso, fiquem cientes disso. Mas eu não tenho muito tempo para fazer o que me trouxe até aqui, então vou ser rápido! Ouçam-me com atenção. O Cubo de Metatron está destruído.
― Destruído?!
― Sim, mas ainda é possível recuperá-lo se vocês voltarem no tempo. Ele está no deserto próximo a Jerusalém.
― E como faremos isso? ― pergunta Miguel. ― Nem quando éramos Arcanjos detínhamos tal poder. Só Deus podia abrir tal portal e viajar no tempo espaço.
― Há outro Embaixador que tem o poder para tal, mas para isso preciso que antigas amizades sejam reconstruídas. Pois é necessária a concordância dos três Arcanjos, essa é uma das ordens de Deus. Amanhã à noite estarei aqui junto com o outro Embaixador, caso não estejam todos, nada poderá ser feito.
E assim ele desaparece da mesma forma que surgiu.
― Vamos até o Gabriel! ― exclama Miguel. ― Não podemos perder tempo.
― Mas você sabe que a sua ida até ele poderá levar a uma luta. Lembre-se do que ele lhe disse quando deixamos o Inferno.
― Eu lembro muito bem, mas não é hora para pensarmos nisso! Irei convencê-lo do que se trata antes de começarmos uma luta imbecil.
― Se você diz...
E assim eles seguem correndo em direção a residência de Gabriel.
No caminho, Surya observa com o canto dos olhos um vulto segui-los por trás dos escombros e prédios abandonados.
― Miguel, há algo nos seguindo. ― alerta Surya.
― Eu sei ― responde ―, ele está nos seguindo desde o encontro com aquele anjo.
― E você não se preocupa com isso?
― Observe bem os movimentos dele e você verá quem é. Não é motivo para nos preocuparmos.
Surya analisa os movimentos do vulto que os segue e conclui:
― Realmente eu me preocupei a toa. Mas será que ele já sabe o que conversamos com aquele anjo?
― Acredito que sim. Talvez até saiba o que conversamos antes daquele sujeitinho aparecer.
― Sujeitinho?! Que maneira de se expressar.
Nisso, o vulto se movimenta velozmente e salta para o lado deles e corre de igual para igual.
― Vejo que já perceberam a minha presença aqui, já que nem se preocuparam quando saltei na direção de vocês.
― Rafael, eu percebi que você nos seguia desde o rio. ― fala Miguel. ― Precisa melhorar a sua furtividade ― avisa ―, pois você parece um elefante querendo se esconder atrás de um galho.
― Heheheh... ― Rafael sorri. ― Realmente eu sou péssimo nesse ponto.
― E então, o quanto sabe? ― pergunta Surya.
― Tudo. Ouvi o antes e o depois.
― Eu não disse? ― fala Miguel olhando para Surya.
― Disse mesmo. ― responde ela. ― Mas o que faz andando por aí à noite? ― pergunta para Rafael. ― Cuidando a vida alheia?
― Não. Na verdade eu percebi uma coisa estranha, um acumulo gigantesco de morcegos nas redondezas, como se estivessem criando um circulo ao redor de onde estamos. E ao observá-los, eu vi vocês seguindo em direção ao rio e resolvi segui-los. Achei que vocês também tivessem percebido esse comportamento estranho dos morcegos. Mas então na hora que eu ia embora surgiu aquele anjo e a conversa de vocês ficou bastante interessante. E antes que me perguntem, concordo em voltarmos no tempo.
― Sabia que é feio ouvir a conversa dos outros. ― fala Surya.
― Eu sabia, mas foi irresistível.
Miguel olha para cima e observa o vôo dos morcegos sobre eles.
― Vamos parar! ― alerta ele.
Todos param e Surya diz:
― Mas estamos tão perto da casa do Gabriel. Porque pararmos agora?
― Observe o céu...
Rafael e Surya olham para cima, e milhares de morcegos voam agitados sobre eles. Alguns dão rasantes, mas um deles permanece parado bem acima dos outros, como se os liderasse.
― Foi isso que eu disse antes. ― fala Rafael. ― Eles estão muito estranhos.
― Não são eles ― avisa Surya ―, mas sim ele.
― Ele?! ― pergunta Rafael.
― Mefistófeles. ― responde.
― O Lorde negro?
― Isto mesmo.
O céu escurece ainda mais e a colônia de morcegos que sobrevoavam os céus voam numa única direção para formar uma grande massa negra. O objeto negro cresce e engole os morcegos que ainda voavam ao redor e explode silenciosamente, revelando o Lorde Negro Mefistófeles, que abre suas asas enquanto observa os três ex-celestiais logo abaixo dele. E em seus braços carrega ancorado por grossas correntes dois machados negros.
― Por algum motivo eu sabia que hoje seria o meu dia de sorte. Nunca saio para procurar vocês, apenas dou ordens aos meus demônios para isso. Mas nas profundezas do Inferno senti um brilho estranho cruzando o Universo e resolvi subir a superfície para ver o que era. E olha quem eu encontro? Dois arcanjos e uma querubim. Eu sou ou não sou sortudo? Humm?
Miguel e os outros apenas observam o demônio, que agora desce vagarosamente até o chão.
― Ficaram mudos?
Mefistófeles se agacha e pega um pedra no chão e fica brincando com ela a entre os dedos. E então ele se vira para Surya e coloca a pedra entre o polegar e o indicador e a dispara contra a ex-querubim. A pedra voa contra seu alvo com a velocidade de um tiro e perfura o ombro de Surya, saindo do outro lado e atingindo uma parede de concreto logo atrás. Surya é arremessada para trás e cai de costas no chão, com seu ombro sangrando vertiginosamente. Miguel corre até ela e a agarra nos braços. Rafael se vira para Mefistófeles e diz:
― Saia daqui Miguel! Vá para casa do Gabriel que eu cuido desse demônio. Não temos tempo a perder! ― e se coloca em posição de combate.
― Como você pretende cuidar de mim se nem ao menos possui seus poderes celestiais? ― pergunta Mefistófeles.
― Um ser celestial não pode sempre contar com seus poderes divinos, por isso milhares de vezes treinamos sem o uso deles. E eu sempre fui o melhor dentre todos.
Nisso, Miguel sai correndo dali com Surya em seus braços. Mefistófeles apenas observa, mas nada faz.
― Bom, vou acabar com você e depois irei atrás dos seus amigos.
― Não pense que será assim tão rápido. ― e pensa: ― Isso, continue falando, assim o Miguel ganha tempo e você não irá mais encontrá-lo.
― Não sei por que, mas acho que você está querendo ganhar tempo para o seu amigo se esconder de mim.
― Heheh... Acho que você descobriu o meu plano. Então não me resta alternativa.
Rafael sai correndo na direção de Mefistófeles e salta com o braço direito recuado para trás pronto para desferir um potente soco. O demônio apenas dá um passo para o lado e golpeia Rafael com um soco no estômago o erguendo ainda mais e fazendo seu corpo curvar. Logo em seguida o joga para cima e na queda, o golpeia com um chute, fazendo-o deslizar pelo chão e abrir uma pequena estrada entre as pedras.
― Mas não se preocupe que eu não vou lhe matar. Preciso levar você e seus amigos vivos para Belial. Assim como Byleth fez com Lúcifer.
― Então Lúcifer foi aprisionado? Isso explica o seu sumiço antes de sairmos do Inferno. Por isso ele queria que fossemos embora o mais rápido possível. Mas ainda não consigo entender porque ele querer nos ajudar quando seria mais fácil nos entregar e salvar seu próprio rabo do fogo.
E Mefistófeles caminha lentamente na direção de Rafael.
― Não sei o que você está pensando, mas esse golpe que desferi em você não foi tão forte assim. Então se levante por gentileza, ainda quero socá-lo um pouco mais antes de entregá-lo.
Rafael se ergue do chão e diz:
― Mas desta vez serei eu a golpeá-lo!
― Nem com um milagre você conseguirá. E se conseguir, quebrarei seus principais ossos para que nunca mais consiga fazer isso novamente. Entendeu?
Rafael cerra os punhos e fecha os olhos como se meditasse perante o inimigo.
― O que pensa que está fazendo? ― e um brilho estranho chama sua atenção. ― Hummm?! O que é isso ao redor dele? Asas?! Mas como?! Deus está...
Antes que Mefistófeles possa concluir, Rafael está parado a centímetros de distância e desfere um soco com toda a sua força. Uma nuvem de poeira se ergue e pedras são arremessadas longe com a onda de energia que se espalha pelo campo de batalha. O demônio é lançado longe e mergulha desacordado dentro do rio Guaíba.
― Eu consegui!
Rafael cambaleia e cai desmaiado.
Perto dali, Miguel sente o tremor de terra, mas ao mesmo tempo avista uma luz dourada vindo do local do combate.
― Um anjo veio nos salvar? Será que eles resolveram vir mais cedo?
E então sobre um dos prédios surgem duas silhuetas conhecidas, uma masculina e outra feminina. Miguel pára e uma voz masculina pergunta:
― O que está acontecendo?
― Fomos atacados por um demônio! Nos descobriram, Gabriel!
E Gabriel salta ao lado de Miguel.
― Uma hora isso iria acontecer. Mas há um anjo lutando contra esse demônio, certo?
― Não sei, Rafael ficou para enfrentá-lo e eu vim com a Surya em meus braços para lhe pedir ajuda e conversar com você sobre algo que aconteceu mais cedo.
E nisso, a silhueta feminina salta do prédio revelando ser Jennifer.
― E nós iríamos atrás de você para falar sobre uma conversa que o Gabriel e eu tivemos agora a pouco.
― Mas isso pode ficar para depois ― fala Miguel apressado ―, o que eu tenho para dizer é mais urgente! Precisamos deixar de lado essa nossa briga imbecil, pois precisamos voltar no tempo e dois anjos irão nos ajudar. Nessa época o Cubo de Metatron foi destruído, mas ainda pode ser recuperado se voltarmos no tempo. Mas para isso precisamos voltar a ser amigos, essa é a condição deles. E eu lhe peço desculpas por ter aceitado a ajuda de Lúcifer, mas foi à única alternativa para nos mantermos vivos.
― Eu sei, demorou, mas compreendi a sua atitude. E nunca deixei de ser seu amigo, mas certas mágoas permaneceram vivas e eu precisava matá-las. Agradeça a Jennifer por isso.
― Amigos então? ― pergunta Miguel estendendo a mão para Gabriel.
― Sempre! ― responde Gabriel apertando a mão de Miguel.
E então, um vendaval levanta poeira no chão e Mefistófeles pousa na frente deles carregando Rafael.
― Que lindo encontro. Todos juntos. Isso vai ser tão divertido. E vocês me pouparam tempo de sair perseguindo um por um.
E joga Rafael aos pés de seus amigos.
Miguel olha para o rosto do demônio e percebe algo de diferente.
― Você não estava tão deformado assim quando eu saí e o Rafael ficou enfrentando você. Foi ele que...?
― Ora, cale-se!
― Então aquele clarão que só os anjos produzem foi ele! Mas como?! ― Miguel se pergunta.
― No momento, eu acho melhor vocês se preocuparem consigo mesmos. E não com o que ele conseguiu. ― fala Mefistófeles.
Gabriel dá um passo à frente e diz:
― Se ele conseguiu, nós conseguiremos também. Não é Miguel?
― Com certeza! Nunca brinque com a gente, demônio!
Nisso, um ser fantasmagórico surge em cima de um dos prédios destruídos e diz:
— Cumpram seus destinos e deixem Mefistófeles comigo!
— Eu conheço essa voz. — fala Mefistófeles.
— Claro que conhece demônio, nos enfrentamos centenas de vezes no decorrer dos séculos. Mas nunca pude matá-lo devido às intervenções superiores, mas hoje, é tudo diferente, finalmente poderei esmagá-lo sob a sola da minha bota!
— Palavras, palavras, palavras... Nunca passam de palavras. E ameaças nunca passam de ameaças. Você não passa de um cachorro preso numa coleira, Barkaial! E basta um chute na sua cara para você calar a boca.
— Barkaial?! — exclama Miguel em pensamento.
O ser fantasmagórico desaparece de cima do prédio e começa a se materializar na frente deles e então se revela um ser esquelético de pele branco-azulada esticada sobre sua estrutura óssea, trajando uma armadura pesada ornada com símbolos arcanos que cobrem sua forma esquálida. Seu pesado elmo ostenta dois chifres curvados nas laterais e através de sua abertura frontal, é possível ver suas orbitas oculares mostrarem um maléfico brilho avermelhado. Suas manoplas terminam em verdadeiras garras metálicas. E nas costas há um par de espadas.
— Chegou a hora!!! — exclama Barkaial, sacando suas espadas.