O dia está anoitecendo e uma densa
névoa está cobrindo a cidade, a temperatura está na casa dos cinco graus
Celsius e a maioria das residências está com suas portas fechadas. E um pouco
afastado da cidade, a beira do rio Guaíba, Miguel e Surya conversam.
― Não acha que já está na hora de
seguirmos atrás do Cubo de Metatron? ― indaga Surya.
― Não sei. ― responde. ― Há tempos
que nem sequer penso nisso. Sem falar que nem temos como nos deslocar pelo
mundo. Iremos pagar como?
― Lembre-se que dinheiro nunca foi
problema para nós.
― Isso numa época em que podíamos
voar e tínhamos a nosso poder angelical para nos defender de eventuais ataques.
Agora somos humanos, qualquer ferimento mais grave pode nos levar a morte e o
pior, nem sequer sabemos para onde iremos após morrer.
― Provavelmente para o Inferno, é o
único lugar que restou.
― Mas eu não acredito que todas as
almas vão para lá. Muitos não merecem sequer chegar perto daquele pesadelo.
― E agora que o Lúcifer não é mais o
todo poderoso, Belial deve estar dançando pelo Inferno.
― Eu só não entendo porque Deus não
pensou em tudo que poderia acontecer com a morte dele e não deixou alguém em
seu lugar? Isso é inconcebível!
― Miguel, você sabe muito bem quem
deveria assumir o lugar dele.
― Eu sei, mas não havia um plano B?
Sempre deve haver um plano B. Sendo onisciente e onipotente, Ele deveria saber
muito bem o terror que isso causaria!
― E se isso for um teste? E se for
nossa responsabilidade reerguer o Paraíso? Ele pode muito bem ter previsto isso
e deixado que nós chegássemos a essa conclusão.
― Uma decisão não muito sábia da
parte Dele. Como faremos isso sem o mínimo de poder? Enfrentar exércitos de
demônios em tais condições só nos levaria a uma morte prematura.
― Eu não tenho uma resposta para
isso, mas deveríamos tentar.
Nisso, a névoa que cobre as margens
do rio se torna agitada e uma voz gutural é ouvida:
― Talvez eu tenha...
A névoa se movimenta vindo de todos
os cantos e se acumula bem na frente deles e então começa a tomar forma sólida
revelando um homem em mantos escuros. Seu cabelo é escuro e seus traços bem
delineados caracterizam-no como um ser celeste. Seus olhos são vermelhos como o
sangue e penetrantes. Em cada mão ele carrega um machado preso a correntes que
se ancoram firmemente nos seus braços, tornando impossível sua remoção. Com o
surgimento do ser, a margem do rio se torna extremamente iluminada.
― Quem é você? ― pergunta Surya
tomando posição defensiva.
― Eu sou um dos primeiros, me chamo
Anael, poucos me conhecem. Mas há meses venho observando vocês e aguardando o
momento certo de me aproximar.
― Você está dizendo que é um anjo?
― pergunta Miguel. ― É isto mesmo?
― Exato. ― responde sorrindo. ― Eu
fui o terceiro anjo a ser criado e hoje sou um dos embaixadores dos planetas na
Terra. Sou o embaixador de Vênus.
Quando ele profere essas palavras,
seu manto se rasga revelando uma armadura negra como a morte, adornada com
desenhos profanos por toda a sua extensão. As ombreiras de sua armadura lembram
crânios humanos em sofrimento. Com isso, ele vira-se de costas para os dois e
de dentro do rio puxa um elmo escuro que parece um crânio em desespero e o veste.
Esse elmo é levemente aberto na frente, deixando parte de sua boca e nariz
aparecerem, além é claro, de seus olhos. Ele então volta sua atenção para os
dois ex-celestiais, e seus olhos parecem brilhar das profundezas de seu elmo.
― Não temam essa minha pequena
mudança, mas essa armadura é necessária para intimidar os seres impuros que se
aproximam. De fato, ela não exprime o meu caráter, fiquem certos disso. E posso
ver certo questionamento no rosto de vocês do fato de eu ainda ser um
celestial, mas adianto uma coisa, eu não tenho mais ligações com o Paraíso como
vocês tinham. Deus nos desligou para no caso de acontecer alguma coisa, podermos
fazer algo por aqueles que ficaram vivos. E é o que eu vim fazer.
― O plano B! ― pensa Miguel.
― Realmente eu ia perguntar isso a
você. Mas você disse ser um Embaixador? ― indaga Surya. ― Nunca ouvimos falar.
― Somos os responsáveis pela
influência dos planetas na vida dos homens. E há tantas coisas que vocês não
sabem. Nem tudo o que acontece é ensinado pelo Paraíso, fiquem cientes disso.
Mas eu não tenho muito tempo para fazer o que me trouxe até aqui, então vou ser
rápido! Ouçam-me com atenção. O Cubo de Metatron está destruído.
― Destruído?!
― Sim, mas ainda é possível
recuperá-lo se vocês voltarem no tempo. Ele está no deserto próximo a
Jerusalém.
― E como faremos isso? ― pergunta
Miguel. ― Nem quando éramos Arcanjos detínhamos tal poder. Só Deus podia abrir
tal portal e viajar no tempo espaço.
― Há outro Embaixador que tem o
poder para tal, mas para isso preciso que antigas amizades sejam reconstruídas.
Pois é necessária a concordância dos três Arcanjos, essa é uma das ordens de
Deus. Amanhã à noite estarei aqui junto com o outro Embaixador, caso não
estejam todos, nada poderá ser feito.
E assim ele desaparece da mesma
forma que surgiu.
― Vamos até o Gabriel! ― exclama
Miguel. ― Não podemos perder tempo.
― Mas você sabe que a sua ida até
ele poderá levar a uma luta. Lembre-se do que ele lhe disse quando deixamos o
Inferno.
― Eu lembro muito bem, mas não é
hora para pensarmos nisso! Irei convencê-lo do que se trata antes de começarmos
uma luta imbecil.
― Se você diz...
E assim eles seguem correndo em
direção a residência de Gabriel.
No caminho, Surya observa com o
canto dos olhos um vulto segui-los por trás dos escombros e prédios abandonados.
― Miguel, há algo nos seguindo. ―
alerta Surya.
― Eu sei ― responde ―, ele está nos
seguindo desde o encontro com aquele anjo.
― E você não se preocupa com isso?
― Observe bem os movimentos dele e
você verá quem é. Não é motivo para nos preocuparmos.
Surya analisa os movimentos do vulto
que os segue e conclui:
― Realmente eu me preocupei a toa.
Mas será que ele já sabe o que conversamos com aquele anjo?
― Acredito que sim. Talvez até saiba
o que conversamos antes daquele sujeitinho aparecer.
― Sujeitinho?! Que maneira de se
expressar.
Nisso, o vulto se movimenta
velozmente e salta para o lado deles e corre de igual para igual.
― Vejo que já perceberam a minha
presença aqui, já que nem se preocuparam quando saltei na direção de vocês.
― Rafael, eu percebi que você nos
seguia desde o rio. ― fala Miguel. ― Precisa melhorar a sua furtividade ― avisa
―, pois você parece um elefante querendo se esconder atrás de um galho.
― Heheheh... ― Rafael sorri. ―
Realmente eu sou péssimo nesse ponto.
― E então, o quanto sabe? ― pergunta
Surya.
― Tudo. Ouvi o antes e o depois.
― Eu não disse? ― fala Miguel
olhando para Surya.
― Disse mesmo. ― responde ela. ― Mas
o que faz andando por aí à noite? ― pergunta para Rafael. ― Cuidando a vida
alheia?
― Não. Na verdade eu percebi uma
coisa estranha, um acumulo gigantesco de morcegos nas redondezas, como se
estivessem criando um circulo ao redor de onde estamos. E ao observá-los, eu vi
vocês seguindo em direção ao rio e resolvi segui-los. Achei que vocês também
tivessem percebido esse comportamento estranho dos morcegos. Mas então na hora
que eu ia embora surgiu aquele anjo e a conversa de vocês ficou bastante interessante.
E antes que me perguntem, concordo em voltarmos no tempo.
― Sabia que é feio ouvir a conversa
dos outros. ― fala Surya.
― Eu sabia, mas foi irresistível.
Miguel olha para cima e observa o
vôo dos morcegos sobre eles.
― Vamos parar! ― alerta ele.
Todos param e Surya diz:
― Mas estamos tão perto da casa do
Gabriel. Porque pararmos agora?
― Observe o céu...
Rafael e Surya olham para cima, e
milhares de morcegos voam agitados sobre eles. Alguns dão rasantes, mas um
deles permanece parado bem acima dos outros, como se os liderasse.
― Foi isso que eu disse antes. ―
fala Rafael. ― Eles estão muito estranhos.
― Não são eles ― avisa Surya ―, mas
sim ele.
― Ele?! ― pergunta Rafael.
― Mefistófeles. ― responde.
― O Lorde negro?
― Isto mesmo.
O céu escurece ainda mais e a
colônia de morcegos que sobrevoavam os céus voam numa única direção para formar
uma grande massa negra. O objeto negro cresce e engole os morcegos que ainda
voavam ao redor e explode silenciosamente, revelando o Lorde Negro Mefistófeles,
que abre suas asas enquanto observa os três ex-celestiais logo abaixo dele. E
em seus braços carrega ancorado por grossas correntes dois machados negros.
― Por algum motivo eu sabia que hoje
seria o meu dia de sorte. Nunca saio para procurar vocês, apenas dou ordens aos
meus demônios para isso. Mas nas profundezas do Inferno senti um brilho
estranho cruzando o Universo e resolvi subir a superfície para ver o que era. E
olha quem eu encontro? Dois arcanjos e uma querubim. Eu sou ou não sou sortudo?
Humm?
Miguel e os outros apenas observam o
demônio, que agora desce vagarosamente até o chão.
― Ficaram mudos?
Mefistófeles se agacha e pega um
pedra no chão e fica brincando com ela a entre os dedos. E então ele se vira
para Surya e coloca a pedra entre o polegar e o indicador e a dispara contra a
ex-querubim. A pedra voa contra seu alvo com a velocidade de um tiro e perfura
o ombro de Surya, saindo do outro lado e atingindo uma parede de concreto logo
atrás. Surya é arremessada para trás e cai de costas no chão, com seu ombro
sangrando vertiginosamente. Miguel corre até ela e a agarra nos braços. Rafael
se vira para Mefistófeles e diz:
― Saia daqui Miguel! Vá para casa do
Gabriel que eu cuido desse demônio. Não temos tempo a perder! ― e se coloca em
posição de combate.
― Como você pretende cuidar de mim
se nem ao menos possui seus poderes celestiais? ― pergunta Mefistófeles.
― Um ser celestial não pode sempre
contar com seus poderes divinos, por isso milhares de vezes treinamos sem o uso
deles. E eu sempre fui o melhor dentre todos.
Nisso, Miguel sai correndo dali com
Surya em seus braços. Mefistófeles apenas observa, mas nada faz.
― Bom, vou acabar com você e depois
irei atrás dos seus amigos.
― Não pense que será assim tão
rápido. ― e pensa: ― Isso, continue falando, assim o Miguel ganha tempo e você
não irá mais encontrá-lo.
― Não sei por que, mas acho que você
está querendo ganhar tempo para o seu amigo se esconder de mim.
― Heheh... Acho que você descobriu o
meu plano. Então não me resta alternativa.
Rafael sai correndo na direção de
Mefistófeles e salta com o braço direito recuado para trás pronto para desferir
um potente soco. O demônio apenas dá um passo para o lado e golpeia Rafael com
um soco no estômago o erguendo ainda mais e fazendo seu corpo curvar. Logo em
seguida o joga para cima e na queda, o golpeia com um chute, fazendo-o deslizar
pelo chão e abrir uma pequena estrada entre as pedras.
― Mas não se preocupe que eu não vou
lhe matar. Preciso levar você e seus amigos vivos para Belial. Assim como Byleth fez com Lúcifer.
― Então
Lúcifer foi aprisionado? Isso explica o seu sumiço antes de sairmos do Inferno.
Por isso ele queria que fossemos embora o mais rápido possível. Mas ainda não
consigo entender porque ele querer nos ajudar quando seria mais fácil nos
entregar e salvar seu próprio rabo do fogo.
E Mefistófeles caminha lentamente na
direção de Rafael.
― Não sei o que você está pensando,
mas esse golpe que desferi em você não foi tão forte assim. Então se levante
por gentileza, ainda quero socá-lo um pouco mais antes de entregá-lo.
Rafael se ergue do chão e diz:
― Mas desta vez serei eu a
golpeá-lo!
― Nem com um milagre você
conseguirá. E se conseguir, quebrarei seus principais ossos para que nunca mais
consiga fazer isso novamente. Entendeu?
Rafael cerra os punhos e fecha os
olhos como se meditasse perante o inimigo.
― O que pensa que está fazendo? ― e
um brilho estranho chama sua atenção. ― Hummm?! O que é isso ao redor dele?
Asas?! Mas como?! Deus está...
Antes que Mefistófeles possa
concluir, Rafael está parado a centímetros de distância e desfere um soco com
toda a sua força. Uma nuvem de poeira se ergue e pedras são arremessadas longe
com a onda de energia que se espalha pelo campo de batalha. O demônio é lançado
longe e mergulha desacordado dentro do rio Guaíba.
― Eu consegui!
Rafael cambaleia e cai desmaiado.
Perto dali, Miguel sente o tremor de
terra, mas ao mesmo tempo avista uma luz dourada vindo do local do combate.
― Um anjo veio nos salvar? Será que
eles resolveram vir mais cedo?
E então sobre um dos prédios surgem
duas silhuetas conhecidas, uma masculina e outra feminina. Miguel pára e uma
voz masculina pergunta:
― O que está acontecendo?
― Fomos atacados por um demônio! Nos
descobriram, Gabriel!
E Gabriel salta ao lado de Miguel.
― Uma hora isso iria acontecer. Mas
há um anjo lutando contra esse demônio, certo?
― Não sei, Rafael ficou para
enfrentá-lo e eu vim com a Surya em meus braços para lhe pedir ajuda e
conversar com você sobre algo que aconteceu mais cedo.
E nisso, a silhueta feminina salta
do prédio revelando ser Jennifer.
― E nós iríamos atrás de você para
falar sobre uma conversa que o Gabriel e eu tivemos agora a pouco.
― Mas isso pode ficar para depois ―
fala Miguel apressado ―, o que eu tenho para dizer é mais urgente! Precisamos
deixar de lado essa nossa briga imbecil, pois precisamos voltar no tempo e dois
anjos irão nos ajudar. Nessa época o Cubo de Metatron foi destruído, mas ainda
pode ser recuperado se voltarmos no tempo. Mas para isso precisamos voltar a
ser amigos, essa é a condição deles. E eu lhe peço desculpas por ter aceitado a
ajuda de Lúcifer, mas foi à única alternativa para nos mantermos vivos.
― Eu sei, demorou, mas compreendi a
sua atitude. E nunca deixei de ser seu amigo, mas certas mágoas permaneceram
vivas e eu precisava matá-las. Agradeça a Jennifer por isso.
― Amigos então? ― pergunta Miguel
estendendo a mão para Gabriel.
― Sempre! ― responde Gabriel
apertando a mão de Miguel.
E então, um vendaval levanta poeira
no chão e Mefistófeles pousa na frente deles carregando Rafael.
― Que lindo encontro. Todos juntos.
Isso vai ser tão divertido. E vocês me pouparam tempo de sair perseguindo um
por um.
E joga Rafael aos pés de seus
amigos.
Miguel olha para o rosto do demônio
e percebe algo de diferente.
― Você não estava tão deformado
assim quando eu saí e o Rafael ficou enfrentando você. Foi ele que...?
― Ora, cale-se!
― Então aquele clarão que só os
anjos produzem foi ele! Mas como?! ― Miguel se pergunta.
― No momento, eu acho melhor vocês
se preocuparem consigo mesmos. E não com o que ele conseguiu. ― fala
Mefistófeles.
Gabriel dá um passo à frente e diz:
― Se ele conseguiu, nós conseguiremos
também. Não é Miguel?
― Com certeza! Nunca brinque com a
gente, demônio!
Nisso, um ser fantasmagórico surge
em cima de um dos prédios destruídos e diz:
— Cumpram seus destinos e deixem
Mefistófeles comigo!
— Eu conheço essa voz. — fala
Mefistófeles.
— Claro que conhece demônio, nos
enfrentamos centenas de vezes no decorrer dos séculos. Mas nunca pude matá-lo
devido às intervenções superiores, mas hoje, é tudo diferente, finalmente
poderei esmagá-lo sob a sola da minha bota!
— Palavras, palavras, palavras...
Nunca passam de palavras. E ameaças nunca passam de ameaças. Você não passa de
um cachorro preso numa coleira, Barkaial! E basta um chute na sua cara para
você calar a boca.
— Barkaial?! — exclama Miguel em
pensamento.
O
ser fantasmagórico desaparece de cima do prédio e começa a se materializar na
frente deles e então se revela um ser esquelético de pele branco-azulada
esticada sobre sua estrutura óssea, trajando uma armadura pesada ornada com
símbolos arcanos que cobrem sua forma esquálida. Seu pesado elmo ostenta dois
chifres curvados nas laterais e através de sua abertura frontal, é possível ver
suas orbitas oculares mostrarem um maléfico brilho avermelhado. Suas manoplas
terminam em verdadeiras garras metálicas. E nas costas há um par de espadas.
— Chegou a hora!!! — exclama
Barkaial, sacando suas espadas.