Florianópolis
é encantadora e excepcionalmente bela. Uma cidade moderna, onde o novo e o
antigo convivem de maneira harmoniosa. Na Ilha da Magia vivem e trabalham
pessoas dos quatro cantos do mundo que uma vez estiveram na cidade e se
apaixonaram pelas praias deslumbrantes, lagoas, morros verdes e pelo povo hospitaleiro.
Mas não apenas de pessoas este local paradisíaco vive.
A
noite já caiu na ilha e a maioria das pessoas jovens e festeiras se dirige as
casas noturnas. Em uma delas, na Lagoa da Conceição — para ser mais exato um
pub belamente enfeitado com tradicionais pôsteres e quadros de bandas e
roqueiros, que fizeram e fazem a história do rock internacional — um jovem
casal está sentado em uma mesa redonda conversando e bebendo chopp, enquanto
ouvem uma banda no palco tocando cover do Raul Seixas.
—
Acredito que você tenha ouvido o sussurro ontem? — pergunta a jovem. Ela é uma
mulher de pele alva, lábios rosados, olhos verdes e cabelos lisos e ruivos. Ela
é sensualmente bonita, e atrai os olhares de admiração por todos que passam
próximos de onde está sentada. E veste-se de acordo com o local, bastante elegante.
— Foi assustador. — e passa a mão no cabelo.
—
Ouvi sim. — confirma o homem. Ele é oriental, com cerca de 1,75 de altura e
relativamente musculoso. Sua pele é clara, seus olhos são castanhos escuros e
seu cabelo é negro, liso e comprido, caindo sobre seus ombros. E veste um terno
escuro. — Foi por isso que marquei esse encontro com você aqui. — e toma um
gole da sua bebida. — Pelo visto hoje a tarde foi aberto um dos portões do
Inferno, mas rapidamente lacrado.
—
E você está achando que algum demônio o cruzou? É isto? — pergunta ela,
bastante curiosa.
—
Exatamente. — e levanta a mão chamando um garçom. — Apesar de não ter sentido
nada, ainda acho melhor averiguarmos isso. Do jeito que anda as coisas, mais
deles andando por aí só irá causar problemas maiores. Já basta a influência que
estão causando no cenário político e no dia-a-dia de muitas pessoas.
—
Fora os crimes bizarros que eles estão cometendo. — complementa. — Mas será que
é realmente necessário irmos? — pergunta, botando em dúvidas se devem agir. — Estou
gostando tanto desta cidade. Porque não deixamos para aqueles garotos?
Após
o garçom encher o seu copo, o homem responde:
—
São crianças ainda, nem sabem metade do que está acontecendo. — e bebe metade
do chopp que havia no copo. — E mesmo quando avisamos um deles em sonho, ele
cometeu o erro do qual o alertamos. E você ainda acha que eles seriam capazes
de enfrentar um demônio?
—
Bom, eles sobreviveram ao apocalipse zumbi e...
—
Iriam todos morrer nas mãos do Abramelech! — dispara, interrompendo ela. — Se
não tivéssemos mudado o andamento das coisas a tempo e os mandando para cá,
hoje eles não seriam nem lembrados. Suas existências seriam apagadas para
sempre.
— Nossa! — exclama. — Você é muito
nervoso. Tente relaxar um pouco.
— Como não vou ficar nervoso se
ultimamente o Balthazar só me pressiona para resolver todos os problemas! —
rebate. — Ora essa, me mandando relaxar.
— Você é um pé no saco, Camael! —
reclama.
— E você é muito alegrinha, Surya. —
rebate novamente. — Nunca vi alguém gostar tanto de festas, danças, músicas e
lugares agitados!
— Você deveria aproveitar essas
coisas ao invés de apenas ficar aí reclamando. Isso vai te deixar louco. — o
aconselha. — E por Deus, pare de ficar encarando todas as pessoas que passam
por aqui. Isso te faz uma pessoa muito irritante!
— Obrigado pelo elogio. — responde
sarcasticamente. — Mas é pela mania de procurar demônios em todos os lugares
que olho para as pessoas.
— Mas você não os tem encontrado
ultimamente por aqui, então, por favor, pare com isso ou não saio mais com
você! — fala Surya.
— E quem falou que isso aqui é um
encontro? Estou aqui a negócios. — e toma um gole do chopp. — Você sabe muito
bem o que eu penso sobre relacionamentos entre seres como nós. É
impressionante, mas a cada dia que passa você se parece ainda mais com eles.
— Espera aí! Você não está pensando
que eu estou afim de você, né? — e gargalha. — Essa foi a melhor piada do
século. Você sabe muito bem de quem eu gosto. E sinceramente, eu deveria estar
por perto para protegê-lo. Mas infelizmente eu não posso. — e faz uma pequena
pausa. — Malditas ordens celestiais! — esbraveja.
— E você sabe o motivo. — alerta.
— Sei sim, se ele me olhar nos olhos
lembrará de tudo e isso poderá deixá-lo insano para sempre. Possivelmente o
transformando naquilo que lutamos hoje. — ela pega uma bolsa que está sobre uma
das cadeiras e levanta-se. — Essa conversa me deixou sem a menor vontade de
continuar aqui. Estou indo embora.
— Espera que eu vou junto com você.
— toma o último gole de chopp e levanta-se. Logo em seguida caminha em direção
a Surya. — Me espera na porta que eu vou ali pagar o que consumimos.
Ela sai caminhando por entre as
mesas e chega a porta de entrada — e também de saída. — do pub. Um vento gelado
vindo do mar toca a pele dela que a faz arrepiar. Ela respira fundo e percorre
toda a rua com os olhos, tentando localizar algo diferente do normal. Mas o que
ela enxerga são as calçadas abarrotadas de punks, negociantes, prostitutas, bem
como turistas e cidadãos de bem que saíram para aproveitarem a noite.
Camael aproxima-se dela e toca seu
ombro, fazendo com que ela vire-se rapidamente para ele.
— Quer me matar de susto?
— Não era a minha intenção. —
responde sorrindo. — O que aconteceu para deixá-la tão tensa? — indaga.
— Não sei — e encolhe os lábios. —,
senti um arrepio logo que cheguei aqui fora. E você sabe como eu fico
preocupada quando isso acontece.
— Deve ser esse vento frio vindo do
mar. — e tira o paletó. — Toma, vista-o, isso vai ajudá-la a sentir menos frio.
— Obrigada. — agradece vestindo o
paletó que Camael lhe emprestou. Paletó este, que ficou bastante grande nela. —
Hahaha. — ri. — Fiquei engraçada com isso. Se você fosse mais alto isto viraria
um sobretudo para mim. — e dobra as mangas para ficar com as mãos aparentes. —
Agora sim podemos ir.
— Ótimo. — fala Camael olhando para
ela e sorrindo. — Você ficou realmente engraçada. Parece um Gnomo.
— Não debocha.
— Heheh. — ri. — Deixei o carro mais
a frente. Então teremos que caminhar um pouco.
Eles saem caminhando pela beirada da
avenida e logo em seguida, três homens encapuzados se olham e fazem sinal em
direção aos dois. E os seguem mantendo certa distância. Ao longo da avenida,
mais a frente, há restaurantes, outras casas noturnas, algumas lojas e enormes
poços de escuridão, locais onde os meliantes espreitam suas vitimas.
Camael se aproxima de um Camaro de
cor amarela e aperta um botão na chave do carro que desativa o alarme. Quando
se aproxima da porta do carona para abri-la, os três homens se aproximam deles
com armas em punho e um diz:
— Perdeu playboy! Fica pianinho e
passa a chave do carro!
Camael suspira e diz:
— Vocês realmente querem fazer isso?
Eu os aconselharia a irem para casa. — sua voz sai bastante calma, apesar de
ter três armas apontadas para si.
— Qual é mermão? Tá nos tirando?
Passa de uma vez essa merda de chave, senão quiser morrer! — o meliante o
ameaça.
Camael tenta novamente dialogar com
eles, mas um dos homens o golpeia na nuca com a coronha da arma. Camael cai de
joelhos no chão e leva as mãos à cabeça. Onde um profundo corte já começa a
sangrar. Nisso, eles olham para Surya e um deles se aproxima dela e diz para os
outros:
— O que acham de levarmos essa
gracinha com a gente? Diversão não vai faltar. Podemos montar nela a noite
toda!
Surya olha para ele com pesar nos
olhos e pergunta:
— Com tantos caminhos a trilhar,
porque você foi logo seguir este?
— Do que está falando?
E então ela toca suavemente o braço
dele e o homem deixa a arma cair no chão. Apavorado, ele olha para ela e começa
a pedir desculpas dando passos para trás. E sai correndo em disparada.
— O que você fez com ele? — pergunta
um dos homens.
Então repentinamente nuvens negras
começam a se acumular no céu e trovões passam a estourar feito faíscas. Camael
ergue-se do chão e exclama:
— Deu uma segunda chance! Coisa que
eu não farei! — e o ferimento em sua cabeça se fecha. — Que o Inferno os devore
para sempre!
Seus punhos são envolvidos por
chamas azuladas e ele golpeia os dois meliantes numa velocidade sobrenatural.
Velocidade esta que nenhum olho humano jamais conseguiria acompanhar. Após o
golpe, as chamas se apagam de suas mãos. Os dois homens ficam paralisados para
segundos depois explodirem em cinzas negras. Camael cambaleia e cai de joelhos
no chão. Surya o socorre e protesta:
— Bastava você dar um soco em cada
um. Não precisava queimar sua Aura Etérea para isso!
— Eles mereceram ir queimar no
Inferno. — rebate. — Agora, por favor, me tire daqui.
Surya abre a porta do carona e o
ajuda a entrar no Camaro. Após isso, ela senta no lugar do motorista e liga o
carro.
— Para onde vamos? — pergunta.
— Para Porto Alegre. — responde
secamente e então adormece.
Surya mesmo contrariada com a
resposta que lhe foi dada por Camael, manobra o carro e segue pela avenida em
direção as ruas que levam a ponte Hercílio Luz — elo entre a ilha e o
continente.
Pouco mais de um dia se passou, e
Miguel — cheio de bandagens e faixas pelo corpo. — encontra-se sentado numa
cadeira de descanso na varanda em frente a sua casa. Local onde tem uma ampla
visão de sua rua. Rua esta muito bem planejada, toda arborizada com casas
milimetricamente construídas, algumas de dois andares e outras de três. Um
pequeno mercado na esquina, uma sorveteira um pouco antes e uma vizinhança às
vezes barulhenta, às vezes não. E hoje é um dia em que ela não está barulhenta,
está silenciosa até demais.
— Se não fossem as ordens médicas eu
iria sair por aí. — pensa. — Preciso descobrir um pouco mais do que está
acontecendo. E o que mais me surpreendeu foi ter visto ontem no noticiário que
encontraram a Anane descordada na Praça do Avião em Canoas. Sem nenhum
ferimento. Só que eu vi ela morta e jorrando sangue do corpo dela. Como pode
isso? — pergunta para si mesmo. — Eu preciso ir atrás de respostas. Mas nem a
Raguel e o Rafael me atendem quando ligo para eles. Será que foram atrás de
alguma informação que explique tudo isso? — e se perde em pensamentos.
Longe dali, Rafael e Raguel
conversam sentados na cobertura do colégio. Um local sem nada além de um chão
de concreto, algumas antenas e uma pequena escada em um dos cantos que leva para
alguma sala no quinto andar.
— E o Gabriel está bem mesmo? —
pergunta Raguel.
— Sim, estive ontem visitando ele.
Apesar dos ferimentos ele vai ficar bem. Informaram-me que em algumas semanas
ele já estará totalmente recuperado da cirurgia no nariz.
— E quanto ao Miguel?
— Não falei com ele ainda. Acabei
perdendo meu celular e não tenho o número dele de cabeça. E você, falou com
ele?
— Não. — responde pensativa. — Ele
me ligou algumas vezes, mas eu não atendi.
— Está evitando ele? — pergunta
curioso.
— Não é isso. Eu apenas quero pensar
um pouco em tudo isso. — se justifica. — Amanhã talvez eu vá visitá-lo e então
irei contar tudo o que aconteceu depois que ele desmaiou.
— Bom, então depois que você for eu
vou. — e olha para o pátio do colégio que se encontra vazio. — Eu ia visitá-lo
hoje a tarde, mas enfim, depois de amanhã eu vou.
— Não, eu vou ir hoje conversar com
ele. — repensa. — Assim já me livro disso e amanhã você já pode ir visitá-lo.
— Você quem sabe. Ah, e eu te chamei
aqui por outra coisa também. Andei pesquisando sobre o nome daquele demônio com
quem vocês lutaram, o Mandrágora. Ele te disse que era um Mancubuss, certo?
— Sim. — concorda. — E?
— Então — retoma. —, pesquisei sobre
essa terminologia e descobri o que é. São seres assexuados, frutos da união
proibida entre uma Sucubus e um Incubus. — gesticula. — E detalhe — faz uma
leve pausa. —, no livro que pesquisei diz que eles são extremamente raros.
Possuem a forma de um humano deformado, podem mudar de forma, e também não
podem se reproduzir.
—
Só descobriu isso? — pergunta um pouco desapontada.
— Não há muitas informações sobre
essas criaturas. — responde, percebendo o desapontamento da amiga. — Nem na
internet é fácil de encontrar. Descobri isso num velho livro que minha mãe tem
guardado junto com outros na garagem.
— Não diz nem como enfrentar essa
criatura? — indaga.
— Absolutamente nada.
— Droga! — exclama Raguel. — Você
tinha que ter visto o poder dele — e recorda. —, com um soco ele era capaz de
nos jogar longe como se não fossemos nada! Ele simplesmente bateu com o Miguel
várias vezes no chão e o jogou em cima do Gabriel como se fosse uma folha de
papel.
— Pelo estado que os dois ficaram
não adiantaria nem nós quatro juntos. — analisa. — Iríamos apanhar do mesmo
jeito.
— Afinal de contas, porque essas
criaturas estão convivendo conosco?
— O fim dos tempos, é só o que me
vem à cabeça. — responde. — Quando tudo era dominado por zumbis, eu até nem
pensava nessa possibilidade. Realmente poderia ser um vírus ou algo assim. Mas
no momento em que foi cogitada a idéia do Padre aquele ser um demônio, o
apocalipse nunca me pareceu tão real. Pois tem uma passagem na Bíblia em que
diz: “E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava
assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia.” Também dizem que os mortos
ressuscitarão, e se esse ressuscitar foi o que aconteceu? — divaga. — Pois
quando pensamos em ressuscitar, é voltar a vida novamente, ser quem você era.
Mas e se isso foi entendido e pregado errado? E o ressuscitar for simplesmente
voltar a vida como um cadáver apenas com os instintos básicos? Já pensou nisso?
Podemos estar realmente vivenciando os últimos dias da Terra. — sua voz sai um
tanto empolgada.
—
Realmente — faz uma pausa tentando digerir tudo o que Rafael falou. —, mas uma
coisa é fato, tudo ter voltado a ser o que era antes e termos ressuscitado, só
confirma que existe uma força superior no universo. Talvez seja Deus, ou qualquer
outra coisa. O certo é que existe. E se existem demônios, devem existir anjos
andando por aí. — constata. — E eu adoraria saber como eles são. Se são iguais
a nós, ou possuem alguma particularidade que os diferencia dos humanos.
Nisso,
toca o sinal avisando que o horário do intervalo chegou.
— E aí,
vai voltar para a aula ou vai embora? — pergunta Raguel.
— Não
sei, mas o certo é que vou comer alguma coisa antes. — e sorri. — Aí depois
vejo isso.
— Bom, eu
vou dar uma volta por aí e depois acho que vou passar na casa do Miguel para falar
com ele.
— Ótimo,
vamos descer então?
Os dois
descem as escadas e chegam a uma pequena sala com baldes e vassouras espalhadas
pelo chão e armários com produtos de limpeza. Rafael abre levemente a porta e
espia para ver se tem alunos ou professores no corredor. Ao não avistar ninguém,
sai rapidamente e é seguido por Raguel. Os dois se despedem ali mesmo e seguem
cada um para um lado.