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Armagedon - Um Mundo em Caos / Final Odyssey de Fernando Athayde dos Santos é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.
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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Um Mundo Em Caos - Capítulo 30

Florianópolis é encantadora e excepcionalmente bela. Uma cidade moderna, onde o novo e o antigo convivem de maneira harmoniosa. Na Ilha da Magia vivem e trabalham pessoas dos quatro cantos do mundo que uma vez estiveram na cidade e se apaixonaram pelas praias deslumbrantes, lagoas, morros verdes e pelo povo hospitaleiro. Mas não apenas de pessoas este local paradisíaco vive.
A noite já caiu na ilha e a maioria das pessoas jovens e festeiras se dirige as casas noturnas. Em uma delas, na Lagoa da Conceição — para ser mais exato um pub belamente enfeitado com tradicionais pôsteres e quadros de bandas e roqueiros, que fizeram e fazem a história do rock internacional — um jovem casal está sentado em uma mesa redonda conversando e bebendo chopp, enquanto ouvem uma banda no palco tocando cover do Raul Seixas.
— Acredito que você tenha ouvido o sussurro ontem? — pergunta a jovem. Ela é uma mulher de pele alva, lábios rosados, olhos verdes e cabelos lisos e ruivos. Ela é sensualmente bonita, e atrai os olhares de admiração por todos que passam próximos de onde está sentada. E veste-se de acordo com o local, bastante elegante. — Foi assustador. — e passa a mão no cabelo.
— Ouvi sim. — confirma o homem. Ele é oriental, com cerca de 1,75 de altura e relativamente musculoso. Sua pele é clara, seus olhos são castanhos escuros e seu cabelo é negro, liso e comprido, caindo sobre seus ombros. E veste um terno escuro. — Foi por isso que marquei esse encontro com você aqui. — e toma um gole da sua bebida. — Pelo visto hoje a tarde foi aberto um dos portões do Inferno, mas rapidamente lacrado.
— E você está achando que algum demônio o cruzou? É isto? — pergunta ela, bastante curiosa.
— Exatamente. — e levanta a mão chamando um garçom. — Apesar de não ter sentido nada, ainda acho melhor averiguarmos isso. Do jeito que anda as coisas, mais deles andando por aí só irá causar problemas maiores. Já basta a influência que estão causando no cenário político e no dia-a-dia de muitas pessoas.
— Fora os crimes bizarros que eles estão cometendo. — complementa. — Mas será que é realmente necessário irmos? — pergunta, botando em dúvidas se devem agir. — Estou gostando tanto desta cidade. Porque não deixamos para aqueles garotos?
Após o garçom encher o seu copo, o homem responde:
— São crianças ainda, nem sabem metade do que está acontecendo. — e bebe metade do chopp que havia no copo. — E mesmo quando avisamos um deles em sonho, ele cometeu o erro do qual o alertamos. E você ainda acha que eles seriam capazes de enfrentar um demônio?
— Bom, eles sobreviveram ao apocalipse zumbi e...
— Iriam todos morrer nas mãos do Abramelech! — dispara, interrompendo ela. — Se não tivéssemos mudado o andamento das coisas a tempo e os mandando para cá, hoje eles não seriam nem lembrados. Suas existências seriam apagadas para sempre.
— Nossa! — exclama. — Você é muito nervoso. Tente relaxar um pouco.
— Como não vou ficar nervoso se ultimamente o Balthazar só me pressiona para resolver todos os problemas! — rebate. — Ora essa, me mandando relaxar.
— Você é um pé no saco, Camael! — reclama.
— E você é muito alegrinha, Surya. — rebate novamente. — Nunca vi alguém gostar tanto de festas, danças, músicas e lugares agitados!
— Você deveria aproveitar essas coisas ao invés de apenas ficar aí reclamando. Isso vai te deixar louco. — o aconselha. — E por Deus, pare de ficar encarando todas as pessoas que passam por aqui. Isso te faz uma pessoa muito irritante!
— Obrigado pelo elogio. — responde sarcasticamente. — Mas é pela mania de procurar demônios em todos os lugares que olho para as pessoas.
— Mas você não os tem encontrado ultimamente por aqui, então, por favor, pare com isso ou não saio mais com você! — fala Surya.
— E quem falou que isso aqui é um encontro? Estou aqui a negócios. — e toma um gole do chopp. — Você sabe muito bem o que eu penso sobre relacionamentos entre seres como nós. É impressionante, mas a cada dia que passa você se parece ainda mais com eles.
— Espera aí! Você não está pensando que eu estou afim de você, né? — e gargalha. — Essa foi a melhor piada do século. Você sabe muito bem de quem eu gosto. E sinceramente, eu deveria estar por perto para protegê-lo. Mas infelizmente eu não posso. — e faz uma pequena pausa. — Malditas ordens celestiais! — esbraveja.
— E você sabe o motivo. — alerta.
— Sei sim, se ele me olhar nos olhos lembrará de tudo e isso poderá deixá-lo insano para sempre. Possivelmente o transformando naquilo que lutamos hoje. — ela pega uma bolsa que está sobre uma das cadeiras e levanta-se. — Essa conversa me deixou sem a menor vontade de continuar aqui. Estou indo embora.
— Espera que eu vou junto com você. — toma o último gole de chopp e levanta-se. Logo em seguida caminha em direção a Surya. — Me espera na porta que eu vou ali pagar o que consumimos.
Ela sai caminhando por entre as mesas e chega a porta de entrada — e também de saída. — do pub. Um vento gelado vindo do mar toca a pele dela que a faz arrepiar. Ela respira fundo e percorre toda a rua com os olhos, tentando localizar algo diferente do normal. Mas o que ela enxerga são as calçadas abarrotadas de punks, negociantes, prostitutas, bem como turistas e cidadãos de bem que saíram para aproveitarem a noite.
Camael aproxima-se dela e toca seu ombro, fazendo com que ela vire-se rapidamente para ele.
— Quer me matar de susto?
— Não era a minha intenção. — responde sorrindo. — O que aconteceu para deixá-la tão tensa? — indaga.
— Não sei — e encolhe os lábios. —, senti um arrepio logo que cheguei aqui fora. E você sabe como eu fico preocupada quando isso acontece.
— Deve ser esse vento frio vindo do mar. — e tira o paletó. — Toma, vista-o, isso vai ajudá-la a sentir menos frio.
— Obrigada. — agradece vestindo o paletó que Camael lhe emprestou. Paletó este, que ficou bastante grande nela. — Hahaha. — ri. — Fiquei engraçada com isso. Se você fosse mais alto isto viraria um sobretudo para mim. — e dobra as mangas para ficar com as mãos aparentes. — Agora sim podemos ir.
— Ótimo. — fala Camael olhando para ela e sorrindo. — Você ficou realmente engraçada. Parece um Gnomo.
— Não debocha.
— Heheh. — ri. — Deixei o carro mais a frente. Então teremos que caminhar um pouco.
Eles saem caminhando pela beirada da avenida e logo em seguida, três homens encapuzados se olham e fazem sinal em direção aos dois. E os seguem mantendo certa distância. Ao longo da avenida, mais a frente, há restaurantes, outras casas noturnas, algumas lojas e enormes poços de escuridão, locais onde os meliantes espreitam suas vitimas.
Camael se aproxima de um Camaro de cor amarela e aperta um botão na chave do carro que desativa o alarme. Quando se aproxima da porta do carona para abri-la, os três homens se aproximam deles com armas em punho e um diz:
— Perdeu playboy! Fica pianinho e passa a chave do carro!
Camael suspira e diz:
— Vocês realmente querem fazer isso? Eu os aconselharia a irem para casa. — sua voz sai bastante calma, apesar de ter três armas apontadas para si.
— Qual é mermão? Tá nos tirando? Passa de uma vez essa merda de chave, senão quiser morrer! — o meliante o ameaça.
Camael tenta novamente dialogar com eles, mas um dos homens o golpeia na nuca com a coronha da arma. Camael cai de joelhos no chão e leva as mãos à cabeça. Onde um profundo corte já começa a sangrar. Nisso, eles olham para Surya e um deles se aproxima dela e diz para os outros:
— O que acham de levarmos essa gracinha com a gente? Diversão não vai faltar. Podemos montar nela a noite toda!
Surya olha para ele com pesar nos olhos e pergunta:
— Com tantos caminhos a trilhar, porque você foi logo seguir este?
— Do que está falando?
E então ela toca suavemente o braço dele e o homem deixa a arma cair no chão. Apavorado, ele olha para ela e começa a pedir desculpas dando passos para trás. E sai correndo em disparada.
— O que você fez com ele? — pergunta um dos homens.
Então repentinamente nuvens negras começam a se acumular no céu e trovões passam a estourar feito faíscas. Camael ergue-se do chão e exclama:
— Deu uma segunda chance! Coisa que eu não farei! — e o ferimento em sua cabeça se fecha. — Que o Inferno os devore para sempre!
Seus punhos são envolvidos por chamas azuladas e ele golpeia os dois meliantes numa velocidade sobrenatural. Velocidade esta que nenhum olho humano jamais conseguiria acompanhar. Após o golpe, as chamas se apagam de suas mãos. Os dois homens ficam paralisados para segundos depois explodirem em cinzas negras. Camael cambaleia e cai de joelhos no chão. Surya o socorre e protesta:
— Bastava você dar um soco em cada um. Não precisava queimar sua Aura Etérea para isso!
— Eles mereceram ir queimar no Inferno. — rebate. — Agora, por favor, me tire daqui.
Surya abre a porta do carona e o ajuda a entrar no Camaro. Após isso, ela senta no lugar do motorista e liga o carro.
— Para onde vamos? — pergunta.
— Para Porto Alegre. — responde secamente e então adormece.
Surya mesmo contrariada com a resposta que lhe foi dada por Camael, manobra o carro e segue pela avenida em direção as ruas que levam a ponte Hercílio Luz — elo entre a ilha e o continente.

Pouco mais de um dia se passou, e Miguel — cheio de bandagens e faixas pelo corpo. — encontra-se sentado numa cadeira de descanso na varanda em frente a sua casa. Local onde tem uma ampla visão de sua rua. Rua esta muito bem planejada, toda arborizada com casas milimetricamente construídas, algumas de dois andares e outras de três. Um pequeno mercado na esquina, uma sorveteira um pouco antes e uma vizinhança às vezes barulhenta, às vezes não. E hoje é um dia em que ela não está barulhenta, está silenciosa até demais.
— Se não fossem as ordens médicas eu iria sair por aí. — pensa. — Preciso descobrir um pouco mais do que está acontecendo. E o que mais me surpreendeu foi ter visto ontem no noticiário que encontraram a Anane descordada na Praça do Avião em Canoas. Sem nenhum ferimento. Só que eu vi ela morta e jorrando sangue do corpo dela. Como pode isso? — pergunta para si mesmo. — Eu preciso ir atrás de respostas. Mas nem a Raguel e o Rafael me atendem quando ligo para eles. Será que foram atrás de alguma informação que explique tudo isso? — e se perde em pensamentos.
Longe dali, Rafael e Raguel conversam sentados na cobertura do colégio. Um local sem nada além de um chão de concreto, algumas antenas e uma pequena escada em um dos cantos que leva para alguma sala no quinto andar.
— E o Gabriel está bem mesmo? — pergunta Raguel.
— Sim, estive ontem visitando ele. Apesar dos ferimentos ele vai ficar bem. Informaram-me que em algumas semanas ele já estará totalmente recuperado da cirurgia no nariz.
— E quanto ao Miguel?
— Não falei com ele ainda. Acabei perdendo meu celular e não tenho o número dele de cabeça. E você, falou com ele?
— Não. — responde pensativa. — Ele me ligou algumas vezes, mas eu não atendi.
— Está evitando ele? — pergunta curioso.
— Não é isso. Eu apenas quero pensar um pouco em tudo isso. — se justifica. — Amanhã talvez eu vá visitá-lo e então irei contar tudo o que aconteceu depois que ele desmaiou.
— Bom, então depois que você for eu vou. — e olha para o pátio do colégio que se encontra vazio. — Eu ia visitá-lo hoje a tarde, mas enfim, depois de amanhã eu vou.
— Não, eu vou ir hoje conversar com ele. — repensa. — Assim já me livro disso e amanhã você já pode ir visitá-lo.
— Você quem sabe. Ah, e eu te chamei aqui por outra coisa também. Andei pesquisando sobre o nome daquele demônio com quem vocês lutaram, o Mandrágora. Ele te disse que era um Mancubuss, certo?
— Sim. — concorda. — E?
— Então — retoma. —, pesquisei sobre essa terminologia e descobri o que é. São seres assexuados, frutos da união proibida entre uma Sucubus e um Incubus. — gesticula. — E detalhe — faz uma leve pausa. —, no livro que pesquisei diz que eles são extremamente raros. Possuem a forma de um humano deformado, podem mudar de forma, e também não podem se reproduzir.
— Só descobriu isso? — pergunta um pouco desapontada.
— Não há muitas informações sobre essas criaturas. — responde, percebendo o desapontamento da amiga. — Nem na internet é fácil de encontrar. Descobri isso num velho livro que minha mãe tem guardado junto com outros na garagem.
— Não diz nem como enfrentar essa criatura? — indaga.
— Absolutamente nada.
— Droga! — exclama Raguel. — Você tinha que ter visto o poder dele — e recorda. —, com um soco ele era capaz de nos jogar longe como se não fossemos nada! Ele simplesmente bateu com o Miguel várias vezes no chão e o jogou em cima do Gabriel como se fosse uma folha de papel.
— Pelo estado que os dois ficaram não adiantaria nem nós quatro juntos. — analisa. — Iríamos apanhar do mesmo jeito.
— Afinal de contas, porque essas criaturas estão convivendo conosco?
— O fim dos tempos, é só o que me vem à cabeça. — responde. — Quando tudo era dominado por zumbis, eu até nem pensava nessa possibilidade. Realmente poderia ser um vírus ou algo assim. Mas no momento em que foi cogitada a idéia do Padre aquele ser um demônio, o apocalipse nunca me pareceu tão real. Pois tem uma passagem na Bíblia em que diz: “E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia.” Também dizem que os mortos ressuscitarão, e se esse ressuscitar foi o que aconteceu? — divaga. — Pois quando pensamos em ressuscitar, é voltar a vida novamente, ser quem você era. Mas e se isso foi entendido e pregado errado? E o ressuscitar for simplesmente voltar a vida como um cadáver apenas com os instintos básicos? Já pensou nisso? Podemos estar realmente vivenciando os últimos dias da Terra. — sua voz sai um tanto empolgada.
— Realmente — faz uma pausa tentando digerir tudo o que Rafael falou. —, mas uma coisa é fato, tudo ter voltado a ser o que era antes e termos ressuscitado, só confirma que existe uma força superior no universo. Talvez seja Deus, ou qualquer outra coisa. O certo é que existe. E se existem demônios, devem existir anjos andando por aí. — constata. — E eu adoraria saber como eles são. Se são iguais a nós, ou possuem alguma particularidade que os diferencia dos humanos.
Nisso, toca o sinal avisando que o horário do intervalo chegou.
— E aí, vai voltar para a aula ou vai embora? — pergunta Raguel.
— Não sei, mas o certo é que vou comer alguma coisa antes. — e sorri. — Aí depois vejo isso.
— Bom, eu vou dar uma volta por aí e depois acho que vou passar na casa do Miguel para falar com ele.
— Ótimo, vamos descer então?
Os dois descem as escadas e chegam a uma pequena sala com baldes e vassouras espalhadas pelo chão e armários com produtos de limpeza. Rafael abre levemente a porta e espia para ver se tem alunos ou professores no corredor. Ao não avistar ninguém, sai rapidamente e é seguido por Raguel. Os dois se despedem ali mesmo e seguem cada um para um lado.

sábado, 14 de julho de 2012

Um Mundo Em Caos - Capítulo 29


Ora, ora, ora... Eu estava tão concentrado aqui que nem percebi vocês. — fala o homem.
Gabriel com semblante de preocupação olha para Raguel e sussurra:
— Como ele sabe que somos nós?
Ela dá de ombros como forma de dizer que não faz a menor idéia.
Miguel dá um passo à frente e adentra o salão. O cheiro metálico de sangue domina o ambiente, mas outro cheiro também permeia o local. O cheiro de coisa morta, podre. O estômago de Miguel embrulha com o fedor que exala do ambiente. Com uma olhada rápida ele procura pelo que poderia estar causando todo aquele mau cheiro, mas nada encontra. E custa a acreditar que aquele cheiro vem nada mais, nada menos, que do homem parado logo a sua frente. Ele observa o homem, mas não consegue ver seu rosto. As sombras negras que se formam dentro do capuz velho deixam apenas os olhos cor de brasa serem vistos.
— O que é você? — pergunta Miguel.
Não irei responder isso a vocês. — responde de forma categórica. — E sabem por quê? Porque esse chão que vocês pisam será seus túmulos! Jamais sairão daqui!
Gabriel e Raguel saem de onde estão e se postam ao lado de Miguel.
— Sinto lhe informar. — fala Gabriel. — Mas somos três contra um! — exclama, tentando intimidar o homem.
Nem se fossem dez eu estaria preocupado! — e movimenta a mão fazendo um arco em sua frente.
Como se fossem atingidos por uma mão gigante, eles são arremessados contra a parede e caem no chão. Miguel ergue a cabeça e com semblante de pavor, não acredita no que acabou de acontecer.
Aqui — e aponta para o chão —, vocês estão em meus domínios. Neste lugar quem manda é eu!
Nisso, o homem começa a tirar sua túnica e deixa seu corpo exposto, completamente nu. Olhando assim, sua forma é bastante frágil e não aparenta nenhuma ameaça. Ele é extremamente pálido e magro, quase cadavérico. Seu rosto é deformado, seus olhos são fundos e a boca é larga com dentes que lembram uma serra. Seu cabelo negro é uma massa imunda e emaranhada que agora cai em forma de tufos sobre o rosto.
Contemplem a perfeição! — exclama abrindo os braços.
Camadas de pele começam a apodrecer e a se esticar, tornando-se lentamente em algo parecido com a pele de um lagarto. Os olhos fundos adquirem uma coloração negra ao redor e o corpo que antes era esquelético, passa a ganhar músculos. Os braços começam a ficar mais longos, assim como as pernas.
Miguel olha para seus amigos e diz:
— Vamos sair daqui. Isso aqui não é desenho ou filme que os imbecis ficam paralisados esperando a criatura se transformar. Que com certeza é o que está acontecendo ali. E sinceramente, não quero ver o que isso vai virar. Então vamos rápido! — exclama.
Eles se levantam e saem correndo pela porta. Suas pernas se movimentam mais rápido do que podem. Eles sentem seus músculos serem exigidos de forma extrema. O corredor é estreito, mas eles conseguem vencê-lo. Ao chegarem na nave principal, a porta se encontra fechada. Raguel e Gabriel param no meio da nave, virados em direção ao corredor. E Miguel corre até a porta e tenta abri-la, mas ela parece lacrada. Ele a força novamente, mas nada acontece. Apesar de não haver nada que suponha isso, a porta está realmente fechada.
— Está trancada! — grita esmurrando a porta.
Um urro alto ecoa pelo corredor, seguido de um estrondo ensurdecedor.
— Ele está vindo! — grita Gabriel.
Uma sombra gigante percorre toda a nave e pousa em frente a imagem do duende crucificado. Aos poucos essa sombra vai tomando forma e revela uma criatura aterradora. Sua cor é de um tom cinzento e seu tamanho é impressionante, muito maior que qualquer humano, com um corpo pesado e musculoso. Uma longa cauda se movimenta freneticamente atrás dele. Orelhas compridas e pontudas projetam-se da face bestial e chifres se projetam da larga testa.
Pensaram realmente que conseguiriam sair daqui? — sua voz gélida é de congelar a espinha. — Eu mando neste lugar! Aqui os mortos me obedecem!
Até então, Gabriel não tinha sentido tanto medo como agora. Nem mesmo quando os zumbis passaram a dominar as ruas e as pessoas que ele conhecia morriam a cada dia. Pela primeira vez em meses ele começou a pensar na possibilidade de que agora talvez sua vida tivesse um fim. Raguel olha para o monstro e seu corpo parece se movimentar sozinho dando passos para trás. Ela sente suas pernas tremerem e suas mãos suarem frio. Sua garganta se torna seca e ela engole a saliva para tentar aliviar o que está sentindo.
Miguel baixa a cabeça e ao fechar os olhos vê o sorridente rosto de Jennifer o convidando para passear. Ele lembra de todo a dor que sentia quando pensou que ela havia morrido e da alegria que o envolveu quando a encontrou. E de que apesar do mundo estar aquele inferno, ele era muito feliz com ela. — e cerra os punhos. — E agora que o mundo parecia ter voltado ao normal e eles poderiam levar uma vida normal, tudo vai por água abaixo. Pensa que talvez devesse ter ficado em casa e tentado convencer seu amigo a esquecer o que viu e levar uma vida normal. Mas isso já não era mais uma possibilidade, agora teria que enfrentar uma criatura bestial que poderia talvez matá-lo com um soco.
— Ok. — sussurra e abre os olhos. — Se é para morrer que seja de forma digna. — e ergue a cabeça encarando a criatura que está mais a frente.
Está pensando em me enfrentar? — indaga de forma irônica. — É isso mesmo? Se você soubesse onde está, baixaria a crista e aceitaria a sua morte em silêncio. Até pensei em lhes dizer meu nome, mas não sou tão educado assim, e também de que adiantaria? Se irão levá-lo ao fundo de seus túmulos!
— Até que você fala bastante para um monstro. — ironiza Miguel.
Hahaha! — ri. — Eu não sou um monstro. Eu não me encaixo nessa definição que vocês usam para classificar seres diferentes de vocês. Eu sou muito maior que isso!
— Chega! — exclama Gabriel já impaciente. — Eu não tenho saco para diálogos! — e fica em posição de combate com os braços erguidos logo a frente do rosto.
— Calma, Gabriel. — aconselha Raguel. — Não faça nada precipitado.
— Não vou morrer parado! — exclama e sai correndo na direção da criatura.
O monstro apenas sorri. Quando Gabriel se aproxima, é atingido no rosto pela cauda do monstro e é arremessado sobre os bancos caindo logo em seguida no chão. Raguel não fica parada e também ataca, mas o monstro aproveita seus longos braços para agarrá-la e a arremessa para cima. Raguel atinge um dos vitrais e fica presa em um rebite de ferro pela manga do casaco.
Patéticos! — exclama a criatura. — Vocês humanos são tão precipitados. — e olha para Miguel. — E você, ficou paralisado de medo?
Miguel nada responde.
Bom, vamos acabar com isso de uma vez! — fala a criatura caminhando na direção de Miguel.
Seus passos ecoam por toda a nave e fazem levantar poeira onde pisam. Miguel fica apenas observando o monstro se aproximar de si e lembra-se do que o sensei falou em uma das aulas: “Vá direto para o coração do inimigo. Seu objetivo principal é como o de um guerreiro para derrotar o inimigo. Não amoleça pela aparência do inimigo ou de si mesmo. Se você entende esta mentalidade, você nunca será vencido”.
— Belas palavras. Só não entendi por que me lembrei disso agora. — pensa ele. — Espero que isso sirva de alguma coisa.
Conforme a criatura se aproxima, o cheiro de podridão se intensifica cada vez mais.
—É agora ou nunca! — e Miguel ataca a criatura com um soco.
Este facilmente segura a mão dele e o joga contra a parede. Miguel cai no chão, mas rapidamente se levanta e limpa o sangue no canto da boca.
Um pouco mais de dificuldade. — comenta a criatura. — Vai ser divertido. Vamos, venha!
— Esse fedor está me desorientando. — pensa, caminhando ao redor da criatura. — Não consigo respirar direito sem que isso me queime as narinas. Saco! — e emenda: — Como queria a minha espada aqui comigo! Mas desde o evento que mudou tudo, ela simplesmente sumiu.
Vai ficar só andando ao meu redor?— e a cauda bate violentamente no chão. — Minha paciência tem limite!
Nisso, uma pedra acerta a cabeça da criatura abrindo um pequeno corte, de onde escorre um liquido escuro e pegajoso.
— Achou mesmo que eu ia ficar desmaiado para sempre? — pergunta Gabriel.
A criatura passa a mão no corte e diz:
Você vai me pagar por isso!
Enquanto a criatura está olhando para Gabriel, Miguel aproveita a distração e impulsiona seu corpo violentamente para frente pegando uma boa velocidade e saltando em direção a criatura. Quando esta se da conta, Miguel está passando ao lado de sua cabeça.
Errou! — sorri.
Rapidamente, Miguel reverte o movimento, guiando seu calcanhar até a nunca da criatura e a golpeando. Desta vez é Miguel quem sorri. Mas sua alegria dura pouco, em segundos a cauda da criatura se enrola na perna dele e o bate várias vezes contra o chão. Gabriel apenas observa sem saber o que fazer, ou se pode fazer alguma coisa para parar aquele monstro. Então, Miguel é jogado em sua direção. Gabriel tenta segurar seu amigo nos braços, mas a força com que ele foi jogado acaba frustrando sua tentativa e os dois voam contra um dos pilares.
Raguel que até agora estava desacordada e ainda pendurada pela manga do casaco, começa aos poucos a abrir os olhos.
— Que dor na minha cabeça! — pensa. — Parece que fui atropelada por um caminhão. Está tudo tão silencioso... — e faz uma pausa. — Será que eles estão bem? — e assim que finalmente abre os olhos, a visão que tem do lado de fora a deixa aterrorizada. — Meu Deus! — exclama com voz trêmula. — O Inferno!
A criatura ouve a voz dela e diz:
Ainda está viva? Bom, vamos terminar com isso de uma vez!
Gabriel sai de baixo de Miguel que está desmaiado e se ergue do chão.
— Você não vai encostar num fio de cabelo dela! — esbraveja. — Ou eu juro que arranco pedaço por pedaço de você!
Está me ameaçando? — pergunta em tom de deboche. — Hahaha! Eu é que vou te fazer em pedaços!
Rindo, a criatura se transforma numa sombra negra e voa ao redor de Gabriel. Ao se aproximar dele, volta a forma normal e o agarra pelo pescoço.
Se eu quebrar o seu pescoço não vai ter a menor graça. — e Gabriel segura o punho da criatura com suas mãos. — Acha mesmo que é forte o suficiente para me fazer soltá-lo? — e então começa a socar o rosto de Gabriel com a mão que está livre.
O som seco dos socos atingindo o rosto de Gabriel ecoa pela nave. O barulho de algo quebrando é ouvido e sangue escorre de seu nariz. Raguel se segura nos ferros do vitral e consegue soltar a manga do casaco. Ela da uma última olhada para o lado de fora e salta sobre a criatura golpeando seu rosto com um soco. Instintivamente a criatura joga Gabriel longe e se vira para onde Raguel caiu.
Uma mulher fraca como você conseguiu me acertar? — esbraveja. — Isso não é possível!
— Tudo para nós é possível! — exclama. — Basta querermos! E tudo o que eu quero nesse momento é te matar! Sobrevivi ao inferno que foi lutar quase que diariamente contra dezenas de zumbis e permaneci de pé! Não cheguei até aqui sendo uma mulher fraca! E não vou deixar você continuar matando inocentes como fez com a Anane! Eu vou vingá-la!
Tola! — e cospe no chão. — Você não sabe quem eu sou e nem o porquê de eu estar aqui. Se me matar, tudo o que tem hoje irá desaparecer mais rápido do que possa imaginar!
— Então me diga o que você é? — pergunta levando a mão para dentro do casaco.
Eu sou um Mancubuss e meu nome é Mandrágora. Satisfeita?— e olha para o vitral quebrado. — E, por favor, não tente usar esse pedaço de ferro que você tem escondido dentro desse casaco. — ela o olha surpresa. — Eu senti o cheiro. — e sorri. — Parece que temos mais um intrometido chegando.
— Hã?! — Raguel olha para o Mandrágora sem entender nada.
Você vai entender. — e vira as costas para ela e sai caminhando. — É só olhar para a porta.
— Espere! — grita. — Aonde você pensa que vai?
Eu perdi a vontade de matar vocês. — responde. — Isso acontece comigo de vez em quando, Raguel. Então aproveite esse meu gesto de boa vontade e leve seus amigos para longe daqui.
— Como você sabe o meu nome?
É uma longa história e eu não vou ter tempo para contá-la agora. — e apressa o passo. — Já deixei meu posto por demasiado sozinho. E isso é um perigo. Se você viu o lado de fora, deve saber do que eu estou falando.
Raguel da alguns passos em direção ao Mandrágora e diz:
— Mas eu não saio daqui sem o corpo da nossa amiga!
Em breve você terá notícias dela. Agora suma daqui! — exclama visivelmente já perdendo a paciência.
O Mandrágora se transforma novamente na sombra negra e desaparece em direção ao corredor. Raguel ouve barulhos na porta e de repente ela se abre e a luz da rua invade a nave. A luz ofusca sua visão e ela mal vê a silhueta de alguém adentrar a Igreja e correr em sua direção.
— Você está bem?
— Estou sim. — responde. — Como é bom ouvir a sua voz, Rafael. — e o abraça ternamente.
— Onde estão os outros? — pergunta, preocupado.
— Estão ali. — responde apontando para os dois.
Rafael corre até eles e aproxima sua mão de suas bocas para ver se estão respirando. Após constatar que sim, ele vira-se para Raguel e pergunta:
— O que aconteceu aqui?
— É uma longa história. — responde. — Mas assim que tirarmos os dois daqui eu lhe conto.
Raguel ajuda Rafael a erguer cada um em um ombro e os leva para fora da igreja. Assim que eles saem, uma voz sussurra dentro da Igreja e porta se fecha violentamente.
— Eu vou realmente querer saber o que aconteceu aqui. — fala Gabriel carregando seus amigos nos braços. — Agora abra a porta do carro para eu colocá-los dentro.
Como só havia um carro parado na frente da Igreja — uma Variant amarela. —, Raguel corre até ele e abre a porta. Rafael coloca os dois no banco de trás e assume o volante do carro. Raguel senta ao seu lado e começa a contar tudo o que aconteceu.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Um Mundo Em Caos - Capítulo 28

Naquela mesma tarde, Miguel está sentado em frente a janela do seu quarto — que dá vista para um jardim na parte de trás do pátio — olhando a chuva que cai do lado de fora.
— Desde que tudo voltou ao normal, ainda não consegui parar para tentar descobrir quem fez isso. Ou qual evento ocasionou isso. Poderes superiores com certeza. Mas será que foi realmente Deus quem fez isso? —indaga para si mesmo. — Que pergunta idiota a minha, claro que sim. Na Bíblia diz que ele ama a todos então é possível. Mas e no caso de não ter sido? Essa é a dúvida que me mata. Preciso ir atrás disso. Mas nem sei por onde começar! E ainda tem aquele homem de mais cedo, quem era e porque estava me olhando? E porque só eu vi? Dúvidas e mais dúvidas, é só o que tenho. Droga! — exclama em voz alta.
— Achei que estava dormindo devido ao silêncio e também por não se mexer. — comenta Gabriel parado na porta do quarto.
Miguel se vira e responde:
— Dormindo nada. Está há muito tempo aí?
— Alguns poucos minutos.
— Então entra aí e pega uma cadeira. — fala apontando em direção a mesa do computador.
Gabriel senta-se ao lado dele e pergunta:
— Estava pensando em quê para estar tão concentrado?
— Em tudo que está acontecendo. — e faz uma pausa. — Estou cheio de dúvidas e nem tenho para quem perguntar.
— Sei como é. Também estou assim, por isso vim conversar com você. Pensei que pudesse solucionar alguns dos meus.
— Ah, senão tiver nada a ver com tudo isso eu posso tentar. — sorri.
— Tem tudo a ver.
— Então estamos num beco sem saída. — e dá um leve tapa no ombro do amigo.
— Cara, ontem aconteceu uma coisa muito estranha quando eu e o Rafael estávamos saindo do colégio. — Miguel apenas acena com a cabeça para que ele continue. — Um trovão bastante forte iluminou toda a rua e quando voltamos a enxergar normalmente um homem estava parado naquela rua em frente ao colégio nos olhando. Era meio barbudo. Mas quando olhamos para o lado, ele desapareceu. Coisa de segundos!
— Que roupa ele usava? — pergunta Miguel curioso.
— Um sobretudo escuro e se apoiava numa bengala. Por quê?
— Eu vi esse homem também — fala sem conter a alegria por não ter sido o único a vê-lo. —, da mesma forma que você falou. Foi logo após um trovão. Só que teve um detalhe estranho.
— O que?
— A Jenny não o viu. Apenas eu. E eu estou até agora tentando entender isso.
—Bom, pelo menos o Rafael e eu vimos.
— Porque só nós três até agora? — pergunta pensativo.
— Não sei. — responde olhando para a janela. —Mas lembre-se que ainda não encontramos a Raguel. Ela pode ter visto também. É apenas uma suposição minha. — e volta-se para Miguel. — E você sabe se aquela sua amiga do outro dia viu também?
— Nada. — responde com um tom frustrante. — Fiz umas perguntas meio idiotas, mas ela não viu nada.
— Só nós três por enquanto. — fica um pouco pensativo e diz: — Miguel, quer ir num lugar comigo?
— Onde?
— Naquela igreja em Porto Alegre. — responde Gabriel. — Foi lá que o primeiro anjo caído apareceu. Que tal irmos dar uma olhada?
— Melhor do que ficarmos parados aqui. — e levanta-se. — Vou pegar a chave do carro.
Os dois entram no carro e rumam a Porto Alegre. Após alguns minutos na estrada vêem placas que até então eram desconhecidas para eles. Placas que informam a distância para chegar à Usina Nuclear de Guaíba. Usina que até então nunca existira.
— Desde quando existe usina nuclear aqui? — pergunta Miguel espantado.
— Estou tão boquiaberto quanto você. — responde. — Porque isso não faz nenhum sentido para mim.
— Claro que não faz! — exclama preocupado. — Nunca existiu isso por aqui! E porque agora existe?! Afinal de contas, o que está acontecendo? — se pergunta.
Até então, nenhum dos dois tinha ido a Porto Alegre ainda. No máximo tinham andando por suas cidades, Esteio e Canoas, mas mais longe ainda não tinham ido. E conforme avançam, mais diferenças começam a notar. E as mais gritantes são as disposições de alguns prédios e a existência de outros onde antes havia parques e praças. Gigantescos prédios envidraçados rasgam os céus, Igrejas com arquitetura gótica e gárgulas em suas entradas parecem substituir as antigas arquiteturas predominantes. Por cada local que passam se sentem como se estivessem chegando à outra cidade. O cartão postal do Rio Grande Sul parece ter mudado seu desenho de forma macabra. Mas pelo menos a disposição das ruas continua a mesma, o que não interfere na chegada deles a Igreja que era o destino principal dessa pequena viagem.
A chuva diminui se tornando uma leve garoa.
— Então chegamos. — comenta Miguel parando o carro em frente a Igreja. — Pelo menos ela continua aqui. E da mesma forma que era ao contrário das outras Igrejas que parecem rabiscos do inferno. — fala se referindo as fachadas macabras das outras Igrejas.
— Será que algo diferente nos espera aí dentro? — pergunta Gabriel um pouco ansioso pelo que podem encontrar. — Desde que acordei naquela manhã desejo vir aqui, mas até então não havia tido essa oportunidade. E agora eu preciso entrar lá.
 Miguel olha ao redor, observa as altas torres da Igreja, as estátuas dos santos na entrada e diz:
— E porque essa curiosidade toda?
— Não sei. — e olha para a porta da Igreja. — É uma sensação, um aperto no peito toda vez que penso nesse lugar.
— Mas parece abandonada de tão suja e com esse mato alto. — fala Miguel e então analisa: — Mas duvido que se realmente estivesse jogada a própria sorte os moradores de rua já não a teriam transformado em casa. Vamos bater na porta e ver quem nos recepciona.
Miguel caminha até a grande porta dupla de madeira e dá três batidas. Do lado de fora, é possível ouvir o eco das batidas vindo do lado de dentro. Os minutos passam e nada ouvem. Miguel novamente bate na porta, mas desta vez fazendo um pouco mais de barulho. Apenas o eco das batidas é ouvido e depois seguido de um silêncio fúnebre.
— Será que está realmente abandonada? — indaga Gabriel. — Alguém já deveria ter ouvido.
Nisso...
— Não adianta baterem rapazes. — uma voz feminina ecoa as suas costas. — Já fiz isso, mas ninguém me atendeu.
Miguel vira levemente a cabeça para trás e vê Raguel escorada no paralama do carro. Ela está usando um sobretudo de couro bege e com os cabelos levemente caídos sobre o rosto.
— Vejo que vocês estão muito bem. — fala ela.
— Mudou o visual, é? — pergunta Miguel sorrindo.
— Dei uma modernizada. — e caminha em direção a eles. — Já que o mundo resolveu mudar, então eu mudei também.
— E o que você veio fazer aqui? — pergunta Gabriel sem rodeios. — Lembra-se de tudo?
— Sim, lembro de tudo. — responde. — Até de coisas que eu adoraria esquecer. — e passa a mão no pescoço. — Mas enfim, eu vim porque um homem apareceu para mim hoje de manhã e pediu que eu viesse aqui.
— Um homem?! — e olha para Gabriel. — Será o mesmo que apareceu para nós?
— Como ele era? — pergunta Gabriel.
— Alto, meio barbudo, usava um sobretudo, bengala... mais ou menos isso. — responde Raguel descrevendo o homem. — Eu o vi parado na minha frente e quando pisquei ele havia desaparecido. E segundos depois ele sussurrou no meu ouvido o endereço daqui. E desapareceu na multidão.
— Esse mesmo homem apareceu para nós hoje pela manhã, mas não nos disse nada. — fala Gabriel. — Apenas ficou nos olhando de longe e sumiu.
— Bom, vamos arrebentar essa porta e entrar! — exclama Miguel caminhando em direção a porta da Igreja.
Ele pára há alguns metros da porta, flexiona as pernas, impulsiona o corpo para frente e sai correndo em direção a ela e a atinge com seu ombro. Mas é arremessado para trás com o impacto e sai rolando pelo chão até bater em uma pedra.
— Ah... meu ombro. — reclama segurando o ombro direito com a mão esquerda.
Gabriel se aproxima e estende a mão para ele.
— Podia ter pedido minha ajuda. — Miguel segura a mão de Gabriel e este o ergue do chão. — Vamos fazer isso juntos.
Miguel bate as mãos nas roupas para tirar o excesso de sujeira e água e os dois se preparam para golpear a porta. Eles saem correndo e ao golpearem a porta, esta afunda e um estouro de madeira quebrando é ouvido pelo lado de dentro. A porta se abre e os dois caem de bruços dentro da Igreja. Miguel e Gabriel olham o interior do local e expressam em uma pequena frase o que sentem ao vê-lo:
— Meu Deus!
A Igreja é formada por uma primeira nave, com as luzes entrando por oito vitrais — quatro em cada lado — e um mais a frente logo acima de uma imagem de um duende crucificado. As paredes e os oito pilares são revestidos de crânios humanos e animais ligados por um cimento pardo. A abóbada é pintada com motivos alegóricos à morte. No chão, os azulejos de cerâmica ou estão arrancados ou danificados. O mobiliário composto por longos bancos estão em sua maioria podres ou quebrados e o altar se encontra atirado em um canto.
Raguel passa por eles e seus olhos percorrem todo o interior da Igreja. Incrédula com o que ela está vendo, múrmura:
— Que lugar demoníaco! Jamais pensei que um dia entraria em um lugar como este. Isto cheira a morte.
Nisso, Miguel e Gabriel já estão parados ao lado dela.
— Eu diria que esta Igreja é bastante macabra. — comenta Miguel movimentando seus dedos nervosamente. — E sinceramente, isso é mais assustador que aqueles zumbis.
— Pode até ser. Mas agora que estamos aqui — Gabriel dá um passo à frente —, vamos ver o que encontramos.
Gabriel segue caminhando logo a frente e Miguel e Raguel seguem logo atrás, olhando para os lados e para os vitrais — extremamente atentos a qualquer movimento estranho. — Miguel sente seu corpo tremer involuntariamente, no seu interior ele não gostaria de estar ali. Mas sim deitado em sua cama.
— Está tudo bem Miguel? — pergunta Raguel.
— Sim. — responde ele, colocando as mãos nos bolsos da calça.
Eles chegam ao fim da nave e vêem um estreito corredor a direita. Ao seguirem em direção ao corredor, em uma das paredes há uma pequena entrada em arco lacrada com cimento.
— Que curioso. — comenta Raguel. — Porque lacrariam uma porta? — indaga. — Será que queriam esconder alguma coisa? — e olha para Miguel.
— Eu nunca cheguei a entrar nessa Igreja. A única pessoa que vinha aqui era a Jenny. Então não conheço nada aqui dentro. Tudo para mim está sendo uma novidade macabra.
— Bom, vamos continuar. — fala Gabriel tomando as rédeas do comando.
Ao adentrarem o corredor, suas paredes são ornamentadas com crânios, tíbias, vértebras e fêmures que formam vários desenhos. Desde efeitos florais utilizando vértebras e clavículas que ajudam a compor a foice, instrumento da morte personificada em um esqueleto.
Conforme avançam, Miguel sente seu nervosismo aumentar. Ele está suando frio e suas mãos não param de tremer dentro dos bolsos de sua calça. Cada vez que olha para as paredes, é como se estivesse vendo a morte na sua frente, ou então em meio a centenas de mortos-vivos sem poder se defender. E isso o assusta bastante. Em contrapartida, seus amigos parecem mais curiosos do que preocupados ou temerários há alguma coisa.
Nisso, Gabriel pára e aponta para o chão do corredor que vira a direita logo a frente deles.
— Tinta?! — indaga Raguel.
Gabriel passa o dedo e constata ser outra coisa. Uma pequena poça de sangue está formada no chão e há frente, um longo rastro de sangue segue pelo corredor. Como se algo ou alguém tivesse sido arrastado por ali. Raguel dá uma breve olhada nas paredes e vê sangue espirrado nelas.
— Vamos embora. — Miguel opina achando ser o melhor a fazer. — Isso aqui já está ficando tenebroso demais. Não sabemos o que vamos encontrar mais a frente e não trouxemos nada para nos defendermos ou lutarmos. Seja lá o que for não estamos preparados. — fala hesitante.
— Você está com medo? — pergunta Gabriel.
— Não é medo. — responde Miguel. — É outra coisa, sei lá. Mas eu não estou me sentindo bem aqui. Estou com um mau pressentimento quanto a isto.
— Eu não vim até aqui para ir embora. — exclama Gabriel. — Eu vou até o fim agora. Se você quiser ir embora pode ir. Digo o mesmo para você, Raguel, se quiser ir também não tem problema.
— Eu ir embora? — ironiza. — Sem chances!
— Eu não vou deixá-los sozinhos. — fala Miguel. — Seja o que Deus quiser. Vamos em frente.
Eles seguem o corredor e após alguns metros vêem uma porta onde o rastro de sangue termina.
— Deve ser ali. — fala Raguel. — Estão prontos?
Gabriel e Miguel meneiam a cabeça fazendo sinal de positivo. Eles seguem pé por pé e ao chegarem à porta, se deparam com um salão oval todo ornamentado em ossos com um grande lustre formado por restos humanos que domina o espaço central do teto. É um lustre formado por fêmures, escápulas, vértebras, que foram complexamente elaboradas em uma terrível peça central. No centro desse salão, há uma mesa de madeira onde uma mulher loira jaz deitada com seus braços esticados para fora da mesa e sangue ainda escorrendo pelo pescoço. E próximo da mesa, um homem alto usando uma túnica preta, capuz — que esconde seu rosto — e uma estola vermelha sobre os ombros, caminha segurando em uma das mãos — pálidas por sinal — uma pequena cumbuca e na outra um livro velho de capa de couro.
Para perfume misturai farinha & mel & grossa borra de vinho tinto: então óleo de Abramelin e óleo de oliva, e depois amolecei & amaciai com rico sangue fresco. — fala o homem em voz alta lendo o livro.
Ele caminha até onde o sangue escorre e segura a pequena cumbuca de forma que o sangue escorra dentro dela. Após encher com uma boa quantidade de sangue, continua a ler o livro:
O melhor sangue é da lua, mensal: então o sangue fresco de uma criança, ou pingando da hóstia do céu: então de inimigos: então do sacerdote ou dos adoradores: por último de alguma besta, não importa qual.
Ele deposita a pequena cumbuca sobre a mesa e pega uma colher de pau e começa a misturar o que quer que tenha ali dentro.
Isto queimai: disto fazei bolos & comei para me. Isto tem também um outro uso; seja depositado diante de me, e conservado impregnado com perfumes de vossa prece: encher-se-á de escaravelhos como se fosse e coisas rastejantes sagradas a me. Estes matai, nomeando vossos inimigos; & eles cairão diante de vós. Também estes engendrarão ardor & poder de ardor em vós ao serem comidos.
O homem eleva a cumbuca até a boca e toma o líquido alaranjado e grosso que escorre dela.
Raguel olha para Gabriel e sussurra:
— O que fazemos agora?
— Nada. — responde. — Vamos apenas observar esse ritual dele.
Nisso, o homem termina de tomar o líquido da cumbuca e a joga no chão. E então vai mexer no corpo da mulher que está deitada sobre a mesa.
Eu sinceramente na faço a menor idéia do porque você veio até aqui. Mas me poupou o trabalho de procurar uma garota virgem. — e vira o rosto dela de forma que Miguel e os outros conseguem ver o rosto da garota. — Agora é só jogar você por aí e será apenas mais um caso de assassinato.
De imediato, Miguel reconhece a garota.
— Anane. — sussurra. — Não...
— A menina que se sacrificou por nós no Shopping? — pergunta Raguel incrédula.
Miguel nada responde. Apenas sente seu corpo arder em fogo e todo aquele nervosismo se transformar em pura raiva. Seus olhos castanhos adquirem um brilho diferente e então de imediato se posta em frente a porta e esbraveja:
— Você não vai jogá-la por aí! Eu não vou deixar!
O homem vira-se para ele e de dentro da escuridão do capuz, os olhos brilham em tom vermelho sangue.