Livro
II
Capítulo
01
Três anos se passaram desde a
Terceira Guerra Mundial que assolou boa parte do planeta e transformou a
maioria das grandes metrópoles em amontoados de concreto. A guerra não durou
muito, foram pouco mais de dois anos e meio de combate, mas o suficiente para
mergulhar o planeta na mais escura noite. Levando muitas localidades a viverem
de forma medieval. A energia elétrica que há mais de um século iluminava as
cidades, agora é objeto de luxo de apenas alguns líderes — famílias que detinham
condições de trazer grandes geradores para as suas residências. — O restante é
iluminado por tochas que cintilam e tremulam presas nas paredes.
Algumas tochas também iluminam o
cais ao longo das margens do rio Guaíba. Onde apesar do horário em que a maioria
das pessoas ainda estão recolhidas naquilo que hoje chamam de lar, pode-se ver
alguns pescadores voltando com seus barcos. Mesmo com as tochas iluminando, o
cais continua sendo um lugar escuro e perigoso. Pois saqueadores sempre o
rondam em busca de ganho fácil. Há um ano, viver nas ruas da capital era
extremamente perigoso, o que dizer então do cais. Assassinatos e espancamentos
eram cometidos tanto a noite quanto a luz do dia por motivos frívolos.
Porém, há exatos nove meses, Miguel
saiu de seu exílio e tomou o controle das ruas para si, inclusive do cais.
Limpou as ruas e os becos com punhos de ferro. Puniu aqueles que causavam o
descontrole nas ruas com a morte. E fez isso sem o menor remorso. A cada
pescoço cortado seus olhos brilhavam como o inferno. A frieza com que ele atuou
durante dois meses o tornou temido e respeitado nas ruas. Um assassino letal e
cruel.
Numa cinzenta manhã de inverno, onde
uma fina garoa cai sobre o que restou de uma outrora brilhante e movimentada
Porto Alegre. Um homem não muito alto vestido de preto e usando um capuz que
esconde seu rosto está em pé no que restou do mais alto prédio da cidade,
olhando para baixo e pensando:
— Vivenciamos o caos, então tudo
voltou ao normal e por um instante conseguimos viver como pessoas normais. E de
dois anos para cá, o caos voltou sobre a forma de outro Cavaleiro... — faz uma
rápida pausa. — Tenho certeza! — barulhos de passos o fazem fugir de seus
pensamentos e uma pequena adaga escorre de dentro da manga de seu casaco e ele
a segura firmemente entre os dedos.
Então os passos cessam bem atrás
dele e dedos tocam suavemente seus ombros descendo por seus braços e o envolvem
em um apertado abraço.
— Eu já percebi que você está com a
sua adaga pronta para perfurar a minha jugular, Miguel.
— Você sabe que eu jamais faria
isso. — e respira fundo absorvendo o doce perfume dos cabelos castanhos que
voam por seu rosto devido ao vento. — Após o seu terceiro passo aqui em cima,
Jenny, eu já senti que era você.
— O que estamos nos tornando? — ela
se pergunta. — A cada dia que passa parece que a nossa humanidade vai se
esvaindo aos poucos. Quando estamos nos acostumando a viver novamente com
aqueles que amamos... — e faz uma pausa. — Estranhamente voltamos à vida, e
perdemos tudo novamente.
Miguel se desvencilha dos braços
dela, puxa o capuz para trás, e pára bem na beirada do parapeito e diz:
— Nem tudo está perdido, ainda temos
um ao outro e nossos amigos. Enquanto tivermos isso jamais perderemos a nossa
humanidade. É nisso que eu acredito. E eu entendo o que você está sentindo, mas
não adianta ficar pensando nisso. E muito menos ficar com o pensamento de
porque tudo voltou a ser o que era. É preciso encarar esses eventos de forma
fria. Veja aquelas pessoas lá embaixo. — apontando. — Mesmo com tudo que
aconteceu, estão levando suas vidas. E é o que precisamos fazer. Com a
diferença que somos nós que mantemos as coisas fluindo desse jeito por aqui.
— Sendo assassinos. — retruca.
— Somos o que precisamos ser. — uma
leve tristeza é carregada junto com as palavras ditas. — Se não fossemos nós
seriam outros. E eu prefiro que sejamos nós. Pois ainda possuímos a esperança
no coração e o discernimento do que é certo e errado. Em poucas palavras, ainda
somos incorruptíveis. Você mesmo já foi assassina, ou esqueceu?
Ela se aproxima dele e encosta seu
rosto no dele.
— Não esqueci não. Mas até quando
seremos incorruptíveis? — sai uma pergunta carregada de dúvidas. — Pois sempre
haverá alguém ou uma forma de nos obrigar a agir contrário aos nossos ideais.
— Eu não sei. — responde Miguel. —
Mas vou fazer de tudo para continuarmos unidos e fazendo o que é certo.
E ela o abraça fortemente,
aconchegando sua cabeça no ombro dele. Mas sente o desconforto dele com tal
atitude dela. De uns tempos para cá, sempre que ela faz isso, Miguel tende a
ficar inquieto.
— Já faz alguns dias que você fica
desconfortável quando eu te abraço ou me aproximo de você. — fala dando um
passo para o lado e saindo momentaneamente do lado dele. — Eu sei que o seu
relacionamento com algumas pessoas mudou muito nesses últimos meses, e que isso
provavelmente assombra seus pensamentos. Mas agora somos você e eu. E você tem
de encarar o que aconteceu e usar o que você me disse agora a pouco para seu
uso próprio. Para o seu bem. Esse ar sombrio não combina com você.
— Não estou assim por isso ou por
aquilo que tenha acontecido, só não vejo muitos motivos para sorrir com o
andamento das coisas. — responde. — Esses últimos meses têm sido complicados
para mim, assumi um compromisso com a cidade e às vezes isso me leva ao limite
da sanidade.
— Você se tornou frio. — diz ela
olhando para baixo. — Você era tão sorridente e cheio de vida. Hoje vive pelos
cantos ou escondido nas sombras. Isso quando não fica horas parado aqui olhando
para o horizonte.
— As minhas mãos estão encharcadas
de sangue. Lutei contra demônios, assassinei padres, assassinei criminosos,
assassinei pessoas que nem sequer sabiam que um dia se tornariam ameaças, vi
pessoas que eu gosto serem mortas na minha frente, e outras coisas. Como acha
que eu me sinto com tudo isso? — pergunta, e continua. — Não são meus
relacionamentos interpessoais que assombram meus pensamentos e sim as coisas
que fiz. E sinceramente, nem sei se fiz a coisa certa.
Jennifer dá um abraço nele e diz:
— Eu também tenho minhas mãos sujas
de sangue, e com certeza piores que as suas. Pois fiz muitas coisas a mando de
alguém que seguia ordens de um demônio. Mas nem por isso deixo de ser a pessoa
que sempre fui quando estou com você. Ao seu lado eu esqueço qualquer tipo de
problema que me assombra, esqueço até mesmo das coisas ruins que já fiz.
Aqueles meses que ficamos longe um do outro... — e suspira profundamente. —
Tudo que eu queria era poder estar com você, não importava como. Era o que eu
sonhava.
— E mesmo com tudo isso que
aconteceu e vem acontecendo, esse sonho não virou um pesadelo? — pergunta,
envolvendo a cintura dela com seus braços. — Você sabe o que eu me tornei desde
que voltamos do Inferno. Desde que a revelação que ouvimos me afetou
profundamente que eu nem sequer conseguia falar direito. — e repete a pergunta:
— Mesmo assim esse sonho não virou um pesadelo?
— Não. — responde, olhando nos olhos
dele. — Porque você continua sendo meu sonho e sempre vai ser. — e aninha seu
rosto no peito dele. — Não importa o que você faça, aos olhos de todas as
pessoas boas você é um salvador. O herói daqui. E é assim que eu te vejo... é
assim que você é para mim. Desculpe por ter te chamado de assassino. Às vezes
me esqueço do peso que essa palavra tem.
Um leve sorriso toca os lábios de
Miguel que diz:
— Esquece isso. — e passa suavemente
a mão no rosto dela. — O importante é que você também é meu sonho. — e a abraça
forte.
Um mês havia se passado desde o dia
sobre o prédio.
Nuvens densas e grossas cobrem o céu
e escurecem o dia quase o transformando em noite. Raios assolam o topo dos
prédios, trazendo consigo uma ventania quase insuportável. E em uma parte mais
afastada do centro da cidade, um homem alto com longos cabelos castanhos, olhos
verdes e uma barba rala, caminha por uma rua escura e suja. Suas roupas são
negras como a noite e um capuz vermelho repousa sobre parte de suas costas. O
tornando quase invisível.
— Gabriel. — uma voz rouca o chama
vindo de algum canto da rua. — Olhe para mim seu Caído!
Nisso, uma chuva torrencial começa a
cair e das nuvens negras alguns raios cruzam os céus e se perdem em direção ao
chão. Seus estrondos ensurdecedores e a luz liberada por eles iluminam as ruas
da cidade.
— O que você quer? — pergunta
Gabriel sem olhar para lado nenhum e aproveitando para puxar o capuz sobre a
cabeça para proteger-se da chuva.
— Vim falar do seu amigo. — responde,
saindo de um beco escuro.
É um homem não muito alto de pele
pálida, usando uma cartola com detalhes brancos na aba e um sobretudo preto.
— Fofocas, eu imagino. — e vira-se
para o homem. — Ainda não sei por que o mantenho vivo e não acabo de vez com a
sua miserável vida. — com o tom de voz mais áspero. — Às vezes você só me
irrita com as suas conversas. Bom, seja breve, pois a minha companheira está me
esperando. Já fiquei tempo demais caminhando pelas ruas.
— O que venho lhe contar não
demorará muito. — e apressa-se em dizer. — O seu velho amigo continua matando
pessoas. Ontem mesmo, ele e a sua parceira executaram quatro homens no cais. Eu
já lhe disse quais são as conseqüências para tais atos.
— E o que você quer que eu faça? —
seus olhos brilham na escuridão de forma ameaçadora. — Que eu os impeça na base
da violência? Eu não me importo com quem ele mata! — exclama. — Pois eu sei
muito bem o tipo de pessoa que ele está livrando esse mundo. São assassinos,
estupradores, pedófilos, simplesmente a escoria da humanidade.
— Você pode até não se importar com
quem ele mata, mas tenho certeza que se importa com ele. — sorri amarelo. —
Mesmo depois do desentendimento que ocorreu entre vocês.
— O que quer dizer?
— Vocês são anjos caídos agora. A
morte de Deus fez com que perdessem a chance de ascender aos céus, o que os
obriga a viver entre os humanos até chegar o dia em que definharão e finalmente
morrerão. Então suas asas foram queimadas em suas costas se tornando marcas que
lembrariam uma tatuagem para aqueles que não a conhecem.
— Eu sei disso, não enrola e
desembucha de uma vez. — fala, já cansado de esperar por uma resposta óbvia.
— Ok. Vocês não estão mais
protegidos pelas mãos do Paraíso. Tornaram-se anjos caídos igual à Lúcifer.
Então estão sujeitos aos atos que cometem na Terra. Sabe por que ele se tornou
o Senhor do Inferno?
E um relâmpago acompanhado de um
ensurdecedor estrondo ilumina os céus da cidade e uma silhueta vestida de negro
é avistada sobre uma construção próxima dali.
— Não, mas adoraria saber. — uma voz
forte ecoa pela rua. — Conte-a para mim também.
— Ora, ora, se não é o outro Caído.
— sorri o homem. — Rafael.
Este salta da construção e aterrissa
suavemente ao lado de Gabriel. Seu rosto está coberto por um capuz negro que
esconde parte de sua face deixando apenas a boca e o queixo visíveis. Onde se
pode notar uma pequena barba.
— Faz tempo que não nos vemos
Gabriel.
Gabriel assente com a cabeça
concordando com o que o amigo falou.
— Mas não vim aqui para conversar. —
fala Rafael. — Estava seguindo esse sujeitinho estranho e achei interessante a
conversa de vocês. Então pode continuá-la.
— Está certo. — e continua: — Quando
Lúcifer veio para a Terra, ele passou a ver as pessoas de forma diferente. Ele
realmente as quis ajudar e proteger. E com isso passou a matar aqueles que iam
contra a paz. Exatamente como o Miguel está fazendo. Com isso, Deus veio ao
encontro dele na Terra e propôs que ele voltasse para o lado dos anjos. Mas ele
não quis e teve suas asas queimadas. A partir daquele momento ele passou a
sofrer como um humano, a ter sentimentos, e foi o ódio que o transformou no que
ele é hoje. — e olha para os dois, que aparentemente ainda mantêm suas atenções
no que ele diz. — Miguel não mata mais apenas para proteger, mas sim por causa
do grande ódio que ele vem adquirindo daqueles que maltratam os outros. É possível
ver isso nos olhos dele, que se tornaram tão frios quanto um bloco de gelo.
Rafael dá um leve passo a frente.
— Você está querendo dizer que o
Miguel vai se tornar o novo Lúcifer? — pergunta um tanto descrente. — É isso
mesmo que eu estou ouvindo?
— Não um novo Lúcifer, mas sim um
novo Anjo da Destruição. — responde de forma firme. — É o que eu venho ouvindo
pelos cantos. E antes de Lúcifer ser quem é hoje, ele foi um Anjo da Destruição
também. Sem falar que Miguel vem sofrendo a influência de Lúcifer desde o dia
em que apertaram as mãos e selaram o pacto deles. Aquele aperto de mão serviu
para Lúcifer introduzir no corpo de Miguel um pouco de sua própria escuridão, o
Inferno faz parte de Miguel.
— E porque deveríamos acreditar em
você? — indaga Gabriel — Já que você não passa de um demônio velho e sem nenhum
valor para o Inferno. O que você ganharia com isso?
— Bom, eu já fui um anjo assim como
vocês, mas isso foi há milênios atrás. Mas eu caí junto com Lúcifer, muito
antes da época em que vocês pediram para viver na Terra. E tudo o que eu mais
quero é poder voltar a ser um.
— Você sabe que Deus morreu e o
Paraíso não existe mais, então esse seu desejo é um pouco impossível de se
realizar. Agora, porque nunca nos disse que era um Caído igual a nós. Por quê?
— pergunta Gabriel.
— Nunca me perguntaram. — responde
cinicamente. — E eu dificilmente revelo detalhes do meu passado.
— Está certo. — fala Rafael. — E
também nunca vimos você como alguém digno de se ter uma amizade ou conversar.
— Assim você me magoa, Caído,
lembrem-se que eu os ajudei contra o Cavaleiro da Conquista. Sem a minha ajuda
vocês jamais teriam escapado de lá. Deveriam ser mais agradecidos a minha
pessoa.
Num piscar de olhos Rafael agarra o
pescoço do homem e o aperta firme.
— Seja agradecido por não termos te
matado! — exclama. — Não te devemos nada! Tenho certeza que nos mataria sem
pestanejar se isso o levasse de volta ao Paraíso. Tudo o que você fez e vem
fazendo é para salvar o seu próprio pescoço. Não tente me enganar com essa sua
cara de bom moço!
Gabriel coloca sua mão no ombro de
Rafael e diz:
— Se acalme. Deixe-o ir. Ele já nos
disse tudo o que precisávamos saber.
Rafael solta o pescoço do homem e
este sai caminhando em direção as sombras e desaparece num beco próximo.
— O que você achou do que ele disse?
— pergunta Gabriel com o semblante um tanto preocupado.
— É difícil saber se é realmente
verdade. — responde Rafael. — Eu realmente não sei o que dizer. Mas se isso for
verdade, precisamos alertar o Miguel e tentarmos ajudá-lo de alguma maneira. O
que não podemos deixar acontecer é ele virar um novo anjo destruidor.
— Pelo sim, pelo não. Eu vou dar um
voto de confiança ao que esse demônio nos contou.
— Você vai ir conversar com o
Miguel? — pergunta um tanto surpreso.
— Com ele não, mas com a Jennifer.
Não teria clima para conversar com ele. E eu também não tenho a intenção de
trocar palavras com ele nesse momento. Quem sabe mais a frente.
— Eu juro que não entendo essa briga
de vocês. Se ele não tivesse aceitado a ajuda de Lúcifer, não estaríamos tendo
essa conversa, pois teríamos virado pó. E isso já faz mais de dois anos.
Sinceramente, acho que já está na hora de vocês terem uma conversa de homens e
pararem de agir feito meninos.
— Pensarei nisso. — fala Gabriel. — Mas
aviso, ainda não esqueci os dias agonizantes que passamos no Inferno. Agora vou
voltar para casa.
― Concordo com você que nossa
estadia lá não foi a melhor experiência ― e vira-se de costas ―, mas nos
manteve vivos e isso para mim basta. Até...
Alguns minutos depois, Gabriel chega
numa construção que antes era um prédio e hoje é apenas o pedaço de um.
Cumprimenta alguns homens que estão parados próximos a porta de entrada e segue
adiante. Ao entrar, se dirige ao quarto onde uma mulher está deitada dormindo. Uma
mulher de longos cabelos ruivos e corpo esbelto.
— Não deve ter agüentado me esperar.
— pensa. — Caminhei tanto que até perdi a hora do jantar.
Ele troca de roupa e ao sentar-se na
cama acaba por acordar a mulher.
— Onde você esteve? — pergunta,
ainda sonolenta.
— Estava conversando com o Gabriel e
acabei perdendo a hora. — responde, deitando na cama.
— Eu estava preocupada com você. — e
o abraça.
— Você sabe que eu não vou muito
longe. — mente. — E quando demoro é porque estou conversando com meu amigo.
— Você deveria conversar com o seu
outro amigo também.
— Vamos dormir. — fala Gabriel,
mudando de assunto.
— Está bem. — e se aninha nos braços
dele.
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