Miguel
levanta da cadeira onde está sentado.
De súbito, um palhaço ― bem alto e
corpulento, diga-se de passagem, ― dobra em um dos corredores e começa a
atravessar a praça de alimentação de ponta a ponta.
― Odeio palhaços! ― resmunga Miguel.
Para ele, palhaços são criaturas horrendas e pavorosas.
― Eu os acho até engraçadinhos. ―
comenta Jennifer.
― Tudo para você é engraçadinho. ―
retruca, olhando para ela.
— Ah, nem tudo. — rebate. — Você com
essa carranca, por exemplo, é horrendo.
— Hahaha... — ri ironicamente. — Tem
algo errado nesse palhaço. Não sei, é como se eu já o tivesse visto.
O palhaço vai descendo por entre os
corredores de mesas e ao olhar para as mesas reservadas de um fast-food à
direita, sorri, e se encaminha para lá. Miguel em pé ao lado da mesa não tira
os olhos dele, segue cada movimento que o palhaço faz. O palhaço saltitando, se
aproxima de Anane e retira do bolso uma rosa e entrega para ela.
— Para uma linda menina.
— Obrigada. — agradece sorrindo e
pega a rosa.
— Deixe para me agradecer depois. —
sorri maliciosamente. — A sua vida começa agora.
— Não entendi.
E sua amiga que está ao lado observa
atenta ao diálogo dos dois.
— Você vai entender em... — e começa
uma contagem. — um... dois... três.
Anane revira os olhos e cai da
cadeira atingindo o chão de forma seca e está babando copiosamente e se
debatendo.
— Ele fez algo com ela! — exclama
Miguel correndo por entre as mesas.
— Socorro! — grita a amiga de Anane
ajoelhada ao lado dela. — Alguém em ajude!
Próximo dali, Gabriel e Rafael que
estavam sentados em uma das mesas — no centro da praça de alimentação — bebendo
e conversando se levantam para ver o que é aquela menina gritando por ajuda. E
nisso, visualizam Miguel correndo por entre as mesas e saltando sobre algumas
cadeiras e indo em direção aos gritos.
— Você viu o que eu vi? — pergunta
Gabriel.
— Sim — responde. —, será que tem
algo a ver com tudo isso que está acontecendo?
— Se tem eu não sei, mas se o Miguel
saiu correndo para ver ou ajudar, é o que iremos saber. Vamos lá.
E saem caminhando apressados em
direção aos gritos. Miguel empurra o palhaço para o lado e se joga de joelhos
no chão e sai deslizando em direção a Anane. Sem pensar duas vezes, ele a ergue
um pouco do chão colocando um de seus braços por baixo do pescoço dela. Ao
olhar para o rosto de Anane, ele observa que os olhos dela emitem uma expressão
de pavor e está com a boca retorcida e babando. Miguel rapidamente olha para o
palhaço e diz:
— O que você fez com ela, seu
monstro?
O palhaço rapidamente responde:
— Ora, eu não fiz nada com essa
garota. Apenas entreguei uma rosa para ela e então ela teve esse ataque.
Miguel não se convence nem um pouco
com a resposta dada pelo individuo e indaga:
— Nós nos conhecemos, não é?
— Você deve estar louco! — exclama.
— Nunca vi mais gordo!
Miguel volta então a sua atenção
para Anane.
— O que ele fez com você, minha
amiga... — cochicha próximo ao rosto dela. — Fala comigo, Anane.
A amiga estranha ao ouvir aquele
rapaz estranho dizer o nome de sua amiga. Nesse tempo, Anane já parou de se
debater e babar. Está apenas desmaiada.
— Você a conhece? — pergunta.
— É uma longa história. — responde
sem nem sequer olhar para a garota.
— É que ela disse que não lhe
conhecia quando você sorriu para ela antes.
— É que já faz muitos anos. — dá uma
resposta qualquer. — Ela nem deve mais se lembrar de mim.
Nisso, Anane acorda de súbito
gritando:
— Eu não posso morrer aqui! Maldito
demônio! — e desfere um soco na face de Miguel. Este mal movimenta a cabeça
para o lado. Ao olhar melhor, ela o reconhece. — Miguel... você voltou para me
ajudar? — e sorri.
— Você me reconheceu. — fala
alegremente. — Na verdade, eu nem sei o que lhe dizer. Mas você está viva e sem
nenhum ferimento.
— Eu... estava enfrentando aqueles
demônios e então eu fui ferida e... O que são todas essas pessoas me olhando? —
pergunta percorrendo o ambiente com os olhos.
— Bom, você teve um tipo de ataque,
sei lá, e parece que isso fez você se lembrar de tudo.
— Deixe eu me levantar. — fala ela
se apoiando no chão e levantando. — Eu não estou entendendo nada. O mundo
voltou ao normal?
As pessoas olham para os dois de
forma estranha, devem estar achando que os dois são loucos. Nisso, dois
funcionários do shopping se aproximam ofegantes e um deles pergunta:
— Onde está à garota que está
passando mal?
— Era eu. — responde Anane. — Mas já
estou bem. Hã, foi minha pressão que baixou. — mente. — E este rapaz me ajudou.
Obrigado por terem vindo. Mas agora está tudo bem mesmo.
Os funcionários vão embora e a amiga
dela a olha.
— Ane! — exclama a amiga. — O que
vocês estão conversando? Achei que não o conhecesse.
— O Miguel? Conheço sim. — responde.
— Mas eu não estava lembrada dele. — e sorri. — Eu vou sair para conversar com
ele e colocar a nossa conversa em dia. Você não se importa, né, Bruna?
— Hã, não. — responde Bruna
aceitando o pedido da amiga.
Anane segura o braço de Miguel e sai
caminhando com ele.
— Eu quero saber tudo o que aconteceu.
Então Jennifer se aproxima dos dois
e Miguel faz um pequeno sinal com os olhos para ela e Jennifer passa pelos dois
como se não o conhecesse. Observando isso, Rafael diz:
— Tem a ver sim com tudo que está
acontecendo. Viu o sinal que ele fez para a Jennifer? Ela passou pelos dois
como se nem o conhecesse. Vamos sentar por perto e tentar ouvir a conversa dos
dois.
Eles dão a volta na praça de
alimentação e sentam numa mesa atrás de onde Miguel e Anane sentaram e ficam
virados de costas para os dois. Miguel resume todos os acontecimentos desde o
dia em que viu a Anane morrer e esta o ouve atentamente.
— E a Raguel, você já a encontrou
depois que tudo voltou ao normal?
— Ainda não. Na verdade ainda não a
procurei. Mas eu sei onde ela mora.
— E será que ela vai se lembrar de
você? Porque eu não lembrava até ter aquele ataque.
— E falando nisso — Miguel muda a
sua expressão. —, o que aquele palhaço lhe disse?
— Eu não lembro direito, mas foi
algo como se a minha vida começasse a partir de agora. — responde um pouco
confusa. — E ele me deu uma rosa também.
— Eu vi ele lhe dar essa rosa. Mas
não a encontrei. Percorri tudo com meus olhos, mas não consegui enxergá-la pelo
chão. Muito estranho aquele palhaço.
Eles continuam sua conversa e então
Jennifer pára em frente a Gabriel e Rafael e diz:
— Mas que bonito, hein! Ouvindo a
conversa dos outros.
Gabriel quase dá um salto da
cadeira.
— Pssstttt! Fala baixo!
Jennifer senta ao lado deles e
pergunta:
— E como está indo a conversa dos
dois?
— Sanou algumas dúvidas que
tínhamos. Hã, você sabe sobre o que, né? — pergunta Gabriel.
— Claro que sei. — responde
Jennifer. — Eu me lembro de tudo. Ela é que por algum motivo não se lembrava de
nada. E pelo visto vocês também se lembram de tudo. — Eles assentem com a
cabeça. — Bom.
Uma semana se passa. E a época de
chuva do mês de julho começa.
Em um longo corredor com várias
portas e armários enfileirados, Miguel está parado em frente a um destes armários
guardando alguns livros. O corredor possui paredes verdes com alguns cartazes
pendurados e o teto tem várias lâmpadas florescentes que o mantém bastante iluminado.
— Com tudo de volta ao normal, o
colégio seria inevitável. — pensa. — Droga! — exclama em voz alta. — uma mão
toca firme o ombro dele. — Jenny?
— Não é ela não mariquinha!
Pela voz Miguel o reconhece de
imediato.
— Tiago. Eu devia ter imaginado. —
pensa. — Tinha até me esquecido dele. — e fecha o armário.
— Olha pra mim quando eu falar com
você! — e o puxa pela camisa, virando-o em sua direção.
Miguel apenas o encara sem dizer uma
única palavra. Talvez ele nem tenha muito que dizer depois do que passou
durante meses, já que as ameaças desse valentão hoje são risíveis. Dignas de
pena.
— Está com tanto medo assim que não
sai uma palavra da sua boca? Não sabia que causava todo esse medo em você?
Maricas!
Miguel agarra os braços de Tiago e o
empurra. Tiago dá alguns passos para trás e fica surpreso com a força com que
Miguel o empurrou.
— Eu não tenho medo de você. —
finalmente resolve falar. — Nunca tive. Pra falar a verdade, nem vale a pena
encostar em você. Um pobre coitado que se aproveita dos mais fracos achando que
as garotas acham isso legal. Hunf! Você é patético! — e vira-se de costas e sai
caminhando com as mãos no bolso.
Tiago começa a tremer de raiva e
lágrimas escorrem de seus olhos. Ele nunca havia sido tão humilhado, por
ninguém e muito menos por alguém que ele considerava inferior.
— Volta aqui seu merda! Eu ainda não
acabei com você!
Miguel nem liga para as palavras que
são vociferadas por Tiago e continua caminhando sem olhar para trás. As feições
no rosto de Tiago mudam para total raiva e ele se lança de forma frenética para
cima de Miguel.
— Eu queria evitar isso, mas não vai
ter jeito. — pensa tirando as mãos dos bolsos e cerrando os punhos.
Quando Tiago se aproxima, desfere um
soco com a intenção de atingir a cabeça de Miguel pelas costas. Mas este
simplesmente se esquiva e golpeia com toda a sua força o estômago de Tiago, o
fazendo urrar de dor e cair de joelhos no chão. Nisso, uma das portas do corredor
se abre e Jennifer sai caminhando. Ao ver Tiago de joelhos na frente de Miguel
sai correndo em direção aos dois.
— Não tente lutar comigo, você não
vai conseguir. E eu também não quero brigar, quero apenas ficar em paz. — fala
Miguel. — Me deixe em paz.
Tiago levanta a cabeça e olha em
direção a Miguel e diz:
— Isso só acaba quando você não
levantar mais. Vou te ensinar que jamais deve encostar em mim! E agora você não
terá mais golpes de sorte!
— Ah, cale a boca! — esbraveja
Miguel desferindo um chute no rosto de Tiago que o faz sair rolando pelo chão.
— Você ficou louco, Miguel? — grita
Jennifer. — Aqui não é lugar de brigar! Você pode ser expulso do colégio!
— Eu fui obrigado a pôr um ponto final
nisso. — responde. — Ele me atacou e eu revidei. E eu também estou cansado de
ver ele se dando bem pelos corredores! Isso foi mais do que merecido!
— Tá, vamos sair daqui antes que
toque o sinal e todos vejam. — fala pegando na mão de Miguel e o puxando.
Mas antes de sair Miguel vira-se
para trás e diz:
— Nunca mais mexa com ninguém ou
todos saberão que você apanhou de mim! E eu terei o prazer de fazer isso na
frente de todos! — e sussurra: — Otário.
Os dois saem dali com Jennifer o
puxando rapidamente pela mão. Ao chegarem na frente do colégio, uma chuva
torrencial castiga as ruas e poças de água começam a se formar nas depressões
do asfalto. Nas laterais das ruas, pequenos córregos já se formam.
— Que tempo estranho. — comenta
Miguel. — Mesmo sendo a época de chuvas, a meteorologia não informava nada
sobre chuva hoje. Seria frio, mas sem chuva.
— Mas por sorte eu trouxe um guarda-chuva.
— fala Jennifer o pegando na mochila e logo em seguida abrindo para proteger os
dois. — Não é muito grande, mas pelo menos não ficaremos encharcados.
Um som alto de trovão seguido de um
clarão cegante estremece o chão. Nuvens negras passam a tomar cada vez mais os
céus e o dia aos poucos vai escurecendo.
— Vamos embora antes que essa chuva
piore! — exclama Jennifer olhando para Miguel.
Mas este nem ouve o que ela diz, ele
está olhando fixamente para a esquina no outro lado da rua. Onde um homem de
sobretudo escuro e um sorriso no rosto está parado sendo banhado por toda a
chuva que cai dos céus. É um homem aparentando uns quarenta anos de idade, uma
barba já grisalha, e com sua mão direita se apóia em uma bengala de madeira.
— Miguel, está me ouvindo? — e dá
uma sacudida nele. — Miguel?!
— Oi? O que aconteceu? — fala Miguel
olhando para ela como se saísse de um transe. — Parou a chuva?
Jennifer apenas o olha sem entender
o porquê dele estar perguntando essas coisas.
— Não, não parou. — responde. — Você
está bem?
— Você viu aquele homem que estava
parado do outro lado da rua?
— Homem? Que homem? Não havia
ninguém lá! Você estava aí parado olhando para aquele muro com cara de paisagem.
— e envolve o braço de Miguel com o dela e sai caminhando puxando ele.
— Mas eu vi. — responde olhando para trás. — Havia
um homem barbudo com um sobretudo escuro me olhando. E ele sorriu.
— Deve ter sido efeito do clarão que
o trovão causou e você achou que viu alguém. Isso acontece. Não fique tão
impressionado com essas coisas.
— Mas...
— Vamos nos apressar para não
ficarmos ainda mais molhados.
E Miguel dá mais uma olhada pra
atrás e pensa:
— Eu tenho certeza do que vi. Havia
alguém ali sim, não foi alucinação minha! Agora só não entendo porque a Jenny
agiu dessa forma. Depois de tudo que passamos... Ou será que apenas eu vi?
Depois penso nisso...
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