— Ora, ora, ora... Eu estava tão concentrado aqui que nem percebi vocês.
— fala o homem.
Gabriel com semblante de preocupação
olha para Raguel e sussurra:
— Como ele sabe que somos nós?
Ela dá de ombros como forma de dizer
que não faz a menor idéia.
Miguel dá um passo à frente e adentra
o salão. O cheiro metálico de sangue domina o ambiente, mas outro cheiro também
permeia o local. O cheiro de coisa morta, podre. O estômago de Miguel embrulha
com o fedor que exala do ambiente. Com uma olhada rápida ele procura pelo que
poderia estar causando todo aquele mau cheiro, mas nada encontra. E custa a
acreditar que aquele cheiro vem nada mais, nada menos, que do homem parado logo
a sua frente. Ele observa o homem, mas não consegue ver seu rosto. As sombras
negras que se formam dentro do capuz velho deixam apenas os olhos cor de brasa
serem vistos.
— O que é você? — pergunta Miguel.
— Não irei responder isso a vocês. — responde de forma categórica. — E sabem por quê? Porque esse chão que vocês
pisam será seus túmulos! Jamais sairão daqui!
Gabriel e Raguel saem de onde estão
e se postam ao lado de Miguel.
— Sinto lhe informar. — fala
Gabriel. — Mas somos três contra um! — exclama, tentando intimidar o homem.
— Nem se fossem dez eu estaria preocupado! — e movimenta a mão
fazendo um arco em sua frente.
Como se fossem atingidos por uma mão
gigante, eles são arremessados contra a parede e caem no chão. Miguel ergue a
cabeça e com semblante de pavor, não acredita no que acabou de acontecer.
— Aqui — e aponta para o chão —,
vocês estão em meus domínios. Neste lugar quem manda é eu!
Nisso, o homem começa a tirar sua
túnica e deixa seu corpo exposto, completamente nu. Olhando assim, sua forma é
bastante frágil e não aparenta nenhuma ameaça. Ele é extremamente pálido e
magro, quase cadavérico. Seu rosto é deformado, seus olhos são fundos e a boca é
larga com dentes que lembram uma serra. Seu cabelo negro é uma massa imunda e
emaranhada que agora cai em forma de tufos sobre o rosto.
— Contemplem a perfeição! — exclama abrindo os braços.
Camadas de pele começam a apodrecer
e a se esticar, tornando-se lentamente em algo parecido com a pele de um
lagarto. Os olhos fundos adquirem uma coloração negra ao redor e o corpo que antes
era esquelético, passa a ganhar músculos. Os braços começam a ficar mais
longos, assim como as pernas.
Miguel olha para seus amigos e diz:
— Vamos sair daqui. Isso aqui não é
desenho ou filme que os imbecis ficam paralisados esperando a criatura se
transformar. Que com certeza é o que está acontecendo ali. E sinceramente, não
quero ver o que isso vai virar. Então vamos rápido! — exclama.
Eles se levantam e saem correndo
pela porta. Suas pernas se movimentam mais rápido do que podem. Eles sentem
seus músculos serem exigidos de forma extrema. O corredor é estreito, mas eles
conseguem vencê-lo. Ao chegarem na nave principal, a porta se encontra fechada.
Raguel e Gabriel param no meio da nave, virados em direção ao corredor. E Miguel
corre até a porta e tenta abri-la, mas ela parece lacrada. Ele a força novamente,
mas nada acontece. Apesar de não haver nada que suponha isso, a porta está
realmente fechada.
— Está trancada! — grita esmurrando
a porta.
Um urro alto ecoa pelo corredor,
seguido de um estrondo ensurdecedor.
— Ele está vindo! — grita Gabriel.
Uma sombra gigante percorre toda a
nave e pousa em frente a imagem do duende crucificado. Aos poucos essa sombra
vai tomando forma e revela uma criatura aterradora. Sua cor é de um tom
cinzento e seu tamanho é impressionante, muito maior que qualquer humano, com
um corpo pesado e musculoso. Uma longa cauda se movimenta freneticamente atrás
dele. Orelhas compridas e pontudas projetam-se da face bestial e chifres se
projetam da larga testa.
— Pensaram realmente que conseguiriam sair daqui? — sua voz gélida é
de congelar a espinha. — Eu mando neste
lugar! Aqui os mortos me obedecem!
Até então, Gabriel não tinha sentido
tanto medo como agora. Nem mesmo quando os zumbis passaram a dominar as ruas e
as pessoas que ele conhecia morriam a cada dia. Pela primeira vez em meses ele
começou a pensar na possibilidade de que agora talvez sua vida tivesse um fim.
Raguel olha para o monstro e seu corpo parece se movimentar sozinho dando
passos para trás. Ela sente suas pernas tremerem e suas mãos suarem frio. Sua
garganta se torna seca e ela engole a saliva para tentar aliviar o que está
sentindo.
Miguel baixa a cabeça e ao fechar os
olhos vê o sorridente rosto de Jennifer o convidando para passear. Ele lembra
de todo a dor que sentia quando pensou que ela havia morrido e da alegria que o
envolveu quando a encontrou. E de que apesar do mundo estar aquele inferno, ele
era muito feliz com ela. — e cerra os punhos. — E agora que o mundo parecia ter
voltado ao normal e eles poderiam levar uma vida normal, tudo vai por água
abaixo. Pensa que talvez devesse ter ficado em casa e tentado convencer seu
amigo a esquecer o que viu e levar uma vida normal. Mas isso já não era mais uma
possibilidade, agora teria que enfrentar uma criatura bestial que poderia talvez
matá-lo com um soco.
— Ok. — sussurra e abre os olhos. —
Se é para morrer que seja de forma digna. — e ergue a cabeça encarando a
criatura que está mais a frente.
— Está pensando em me enfrentar? — indaga de forma irônica. — É isso mesmo? Se você soubesse onde está,
baixaria a crista e aceitaria a sua morte em silêncio. Até pensei em lhes dizer
meu nome, mas não sou tão educado assim, e também de que adiantaria? Se irão
levá-lo ao fundo de seus túmulos!
— Até que você fala bastante para um
monstro. — ironiza Miguel.
— Hahaha! — ri. — Eu não sou um
monstro. Eu não me encaixo nessa definição que vocês usam para classificar
seres diferentes de vocês. Eu sou muito maior que isso!
— Chega! — exclama Gabriel já
impaciente. — Eu não tenho saco para diálogos! — e fica em posição de combate
com os braços erguidos logo a frente do rosto.
— Calma, Gabriel. — aconselha
Raguel. — Não faça nada precipitado.
— Não vou morrer parado! — exclama e
sai correndo na direção da criatura.
O monstro apenas sorri. Quando
Gabriel se aproxima, é atingido no rosto pela cauda do monstro e é arremessado
sobre os bancos caindo logo em seguida no chão. Raguel não fica parada e também
ataca, mas o monstro aproveita seus longos braços para agarrá-la e a arremessa
para cima. Raguel atinge um dos vitrais e fica presa em um rebite de ferro pela
manga do casaco.
— Patéticos! — exclama a criatura. — Vocês humanos são tão precipitados. — e olha para Miguel. — E você, ficou paralisado de medo?
Miguel nada responde.
— Bom, vamos acabar com isso de uma vez! — fala a criatura caminhando
na direção de Miguel.
Seus passos ecoam por toda a nave e
fazem levantar poeira onde pisam. Miguel fica apenas observando o monstro se aproximar
de si e lembra-se do que o sensei falou em uma das aulas: “Vá direto para o coração do inimigo. Seu objetivo principal é como o
de um guerreiro para derrotar o inimigo. Não amoleça pela aparência do inimigo
ou de si mesmo. Se você entende esta mentalidade, você nunca será vencido”.
— Belas palavras. Só não entendi por
que me lembrei disso agora. — pensa ele. — Espero que isso sirva de alguma
coisa.
Conforme a criatura se aproxima, o
cheiro de podridão se intensifica cada vez mais.
—É agora ou nunca! — e Miguel ataca
a criatura com um soco.
Este facilmente segura a mão dele e
o joga contra a parede. Miguel cai no chão, mas rapidamente se levanta e limpa
o sangue no canto da boca.
— Um pouco mais de dificuldade. — comenta a criatura. — Vai ser divertido. Vamos, venha!
— Esse fedor está me desorientando.
— pensa, caminhando ao redor da criatura. — Não consigo respirar direito sem
que isso me queime as narinas. Saco! — e emenda: — Como queria a minha espada
aqui comigo! Mas desde o evento que mudou tudo, ela simplesmente sumiu.
— Vai ficar só andando ao meu redor?— e a cauda bate violentamente no
chão. — Minha paciência tem limite!
Nisso, uma pedra acerta a cabeça da
criatura abrindo um pequeno corte, de onde escorre um liquido escuro e
pegajoso.
— Achou mesmo que eu ia ficar
desmaiado para sempre? — pergunta Gabriel.
A criatura passa a mão no corte e
diz:
— Você vai me pagar por isso!
Enquanto a criatura está olhando
para Gabriel, Miguel aproveita a distração e impulsiona seu corpo violentamente
para frente pegando uma boa velocidade e saltando em direção a criatura. Quando
esta se da conta, Miguel está passando ao lado de sua cabeça.
— Errou! — sorri.
Rapidamente, Miguel reverte o
movimento, guiando seu calcanhar até a nunca da criatura e a golpeando. Desta
vez é Miguel quem sorri. Mas sua alegria dura pouco, em segundos a cauda da
criatura se enrola na perna dele e o bate várias vezes contra o chão. Gabriel
apenas observa sem saber o que fazer, ou se pode fazer alguma coisa para parar
aquele monstro. Então, Miguel é jogado em sua direção. Gabriel tenta segurar
seu amigo nos braços, mas a força com que ele foi jogado acaba frustrando sua
tentativa e os dois voam contra um dos pilares.
Raguel que até agora estava
desacordada e ainda pendurada pela manga do casaco, começa aos poucos a abrir
os olhos.
— Que dor na minha cabeça! — pensa.
— Parece que fui atropelada por um caminhão. Está tudo tão silencioso... — e
faz uma pausa. — Será que eles estão bem? — e assim que finalmente abre os
olhos, a visão que tem do lado de fora a deixa aterrorizada. — Meu Deus! —
exclama com voz trêmula. — O Inferno!
A criatura ouve a voz dela e diz:
— Ainda está viva? Bom, vamos terminar com isso de uma vez!
Gabriel sai de baixo de Miguel que
está desmaiado e se ergue do chão.
— Você não vai encostar num fio de
cabelo dela! — esbraveja. — Ou eu juro que arranco pedaço por pedaço de você!
— Está me ameaçando? — pergunta em tom de deboche. — Hahaha! Eu é que vou te fazer em pedaços!
Rindo, a criatura se transforma numa
sombra negra e voa ao redor de Gabriel. Ao se aproximar dele, volta a forma
normal e o agarra pelo pescoço.
— Se eu quebrar o seu pescoço não vai ter a menor graça. — e Gabriel
segura o punho da criatura com suas mãos. — Acha
mesmo que é forte o suficiente para me fazer soltá-lo? — e então começa a
socar o rosto de Gabriel com a mão que está livre.
O som seco dos socos atingindo o
rosto de Gabriel ecoa pela nave. O barulho de algo quebrando é ouvido e sangue
escorre de seu nariz. Raguel se segura nos ferros do vitral e consegue soltar a
manga do casaco. Ela da uma última olhada para o lado de fora e salta sobre a
criatura golpeando seu rosto com um soco. Instintivamente a criatura joga
Gabriel longe e se vira para onde Raguel caiu.
— Uma mulher fraca como você conseguiu me acertar? — esbraveja. — Isso não é possível!
— Tudo para nós é possível! —
exclama. — Basta querermos! E tudo o que eu quero nesse momento é te matar!
Sobrevivi ao inferno que foi lutar quase que diariamente contra dezenas de
zumbis e permaneci de pé! Não cheguei até aqui sendo uma mulher fraca! E não
vou deixar você continuar matando inocentes como fez com a Anane! Eu vou
vingá-la!
— Tola! — e cospe no chão. — Você
não sabe quem eu sou e nem o porquê de eu estar aqui. Se me matar, tudo o que
tem hoje irá desaparecer mais rápido do que possa imaginar!
— Então me diga o que você é? —
pergunta levando a mão para dentro do casaco.
— Eu sou um Mancubuss e meu nome é Mandrágora. Satisfeita?— e olha
para o vitral quebrado. — E, por favor,
não tente usar esse pedaço de ferro que você tem escondido dentro desse casaco.
— ela o olha surpresa. — Eu senti o
cheiro. — e sorri. — Parece que temos
mais um intrometido chegando.
— Hã?! — Raguel olha para o
Mandrágora sem entender nada.
— Você vai entender. — e vira as costas para ela e sai caminhando. — É só olhar para a porta.
— Espere! — grita. — Aonde você
pensa que vai?
— Eu perdi a vontade de matar vocês. — responde. — Isso acontece comigo de vez em quando, Raguel.
Então aproveite esse meu gesto de boa vontade e leve seus amigos para longe
daqui.
— Como você sabe o meu nome?
— É uma longa história e eu não vou ter tempo para contá-la agora. —
e apressa o passo. — Já deixei meu posto
por demasiado sozinho. E isso é um perigo. Se você viu o lado de fora, deve
saber do que eu estou falando.
Raguel da alguns passos em direção
ao Mandrágora e diz:
— Mas eu não saio daqui sem o corpo
da nossa amiga!
— Em breve você terá notícias dela. Agora suma daqui! — exclama
visivelmente já perdendo a paciência.
O Mandrágora se transforma novamente
na sombra negra e desaparece em direção ao corredor. Raguel ouve barulhos na
porta e de repente ela se abre e a luz da rua invade a nave. A luz ofusca sua
visão e ela mal vê a silhueta de alguém adentrar a Igreja e correr em sua
direção.
— Você está bem?
— Estou sim. — responde. — Como é
bom ouvir a sua voz, Rafael. — e o abraça ternamente.
— Onde estão os outros? — pergunta,
preocupado.
— Estão ali. — responde apontando
para os dois.
Rafael corre até eles e aproxima sua
mão de suas bocas para ver se estão respirando. Após constatar que sim, ele
vira-se para Raguel e pergunta:
— O que aconteceu aqui?
— É uma longa história. — responde.
— Mas assim que tirarmos os dois daqui eu lhe conto.
Raguel ajuda Rafael a erguer cada um
em um ombro e os leva para fora da igreja. Assim que eles saem, uma voz
sussurra dentro da Igreja e porta se fecha violentamente.
— Eu vou realmente querer saber o
que aconteceu aqui. — fala Gabriel carregando seus amigos nos braços. — Agora
abra a porta do carro para eu colocá-los dentro.
Como só havia um carro parado na
frente da Igreja — uma Variant amarela. —, Raguel corre até ele e abre a porta.
Rafael coloca os dois no banco de trás e assume o volante do carro. Raguel
senta ao seu lado e começa a contar tudo o que aconteceu.
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