Naquela mesma tarde, Miguel está
sentado em frente a janela do seu quarto — que dá vista para um jardim na parte
de trás do pátio — olhando a chuva que cai do lado de fora.
— Desde que tudo voltou ao normal,
ainda não consegui parar para tentar descobrir quem fez isso. Ou qual evento
ocasionou isso. Poderes superiores com certeza. Mas será que foi realmente Deus
quem fez isso? —indaga para si mesmo. — Que pergunta idiota a minha, claro que
sim. Na Bíblia diz que ele ama a todos então é possível. Mas e no caso de não
ter sido? Essa é a dúvida que me mata. Preciso ir atrás disso. Mas nem sei por onde
começar! E ainda tem aquele homem de mais cedo, quem era e porque estava me
olhando? E porque só eu vi? Dúvidas e mais dúvidas, é só o que tenho. Droga! —
exclama em voz alta.
— Achei que estava dormindo devido
ao silêncio e também por não se mexer. — comenta Gabriel parado na porta do
quarto.
Miguel se vira e responde:
— Dormindo nada. Está há muito tempo
aí?
— Alguns poucos minutos.
— Então entra aí e pega uma cadeira.
— fala apontando em direção a mesa do computador.
Gabriel senta-se ao lado dele e pergunta:
— Estava pensando em quê para estar
tão concentrado?
— Em tudo que está acontecendo. — e
faz uma pausa. — Estou cheio de dúvidas e nem tenho para quem perguntar.
— Sei como é. Também estou assim,
por isso vim conversar com você. Pensei que pudesse solucionar alguns dos meus.
— Ah, senão tiver nada a ver com
tudo isso eu posso tentar. — sorri.
— Tem tudo a ver.
— Então estamos num beco sem saída.
— e dá um leve tapa no ombro do amigo.
— Cara, ontem aconteceu uma coisa
muito estranha quando eu e o Rafael estávamos saindo do colégio. — Miguel
apenas acena com a cabeça para que ele continue. — Um trovão bastante forte
iluminou toda a rua e quando voltamos a enxergar normalmente um homem estava
parado naquela rua em frente ao colégio nos olhando. Era meio barbudo. Mas
quando olhamos para o lado, ele desapareceu. Coisa de segundos!
— Que roupa ele usava? — pergunta
Miguel curioso.
— Um sobretudo escuro e se apoiava
numa bengala. Por quê?
— Eu vi esse homem também — fala sem
conter a alegria por não ter sido o único a vê-lo. —, da mesma forma que você
falou. Foi logo após um trovão. Só que teve um detalhe estranho.
— O que?
— A Jenny não o viu. Apenas eu. E eu
estou até agora tentando entender isso.
—Bom, pelo menos o Rafael e eu
vimos.
— Porque só nós três até agora? —
pergunta pensativo.
— Não sei. — responde olhando para a
janela. —Mas lembre-se que ainda não encontramos a Raguel. Ela pode ter visto
também. É apenas uma suposição minha. — e volta-se para Miguel. — E você sabe
se aquela sua amiga do outro dia viu também?
— Nada. — responde com um tom
frustrante. — Fiz umas perguntas meio idiotas, mas ela não viu nada.
— Só nós três por enquanto. — fica
um pouco pensativo e diz: — Miguel, quer ir num lugar comigo?
— Onde?
— Naquela igreja em Porto Alegre. —
responde Gabriel. — Foi lá que o primeiro anjo caído apareceu. Que tal irmos
dar uma olhada?
— Melhor do que ficarmos parados
aqui. — e levanta-se. — Vou pegar a chave do carro.
Os dois entram no carro e rumam a
Porto Alegre. Após alguns minutos na estrada vêem placas que até então eram
desconhecidas para eles. Placas que informam a distância para chegar à Usina
Nuclear de Guaíba. Usina que até então nunca existira.
— Desde quando existe usina nuclear
aqui? — pergunta Miguel espantado.
— Estou tão boquiaberto quanto você.
— responde. — Porque isso não faz nenhum sentido para mim.
— Claro que não faz! — exclama
preocupado. — Nunca existiu isso por aqui! E porque agora existe?! Afinal de
contas, o que está acontecendo? — se pergunta.
Até então, nenhum dos dois tinha ido
a Porto Alegre ainda. No máximo tinham andando por suas cidades, Esteio e
Canoas, mas mais longe ainda não tinham ido. E conforme avançam, mais
diferenças começam a notar. E as mais gritantes são as disposições de alguns
prédios e a existência de outros onde antes havia parques e praças. Gigantescos
prédios envidraçados rasgam os céus, Igrejas com arquitetura gótica e gárgulas
em suas entradas parecem substituir as antigas arquiteturas predominantes. Por
cada local que passam se sentem como se estivessem chegando à outra cidade. O
cartão postal do Rio Grande Sul parece ter mudado seu desenho de forma macabra.
Mas pelo menos a disposição das ruas continua a mesma, o que não interfere na
chegada deles a Igreja que era o destino principal dessa pequena viagem.
A chuva diminui se tornando uma leve
garoa.
— Então chegamos. — comenta Miguel
parando o carro em frente a Igreja. — Pelo menos ela continua aqui. E da mesma
forma que era ao contrário das outras Igrejas que parecem rabiscos do inferno.
— fala se referindo as fachadas macabras das outras Igrejas.
— Será que algo diferente nos espera
aí dentro? — pergunta Gabriel um pouco ansioso pelo que podem encontrar. —
Desde que acordei naquela manhã desejo vir aqui, mas até então não havia tido
essa oportunidade. E agora eu preciso entrar lá.
Miguel olha ao redor, observa as altas torres
da Igreja, as estátuas dos santos na entrada e diz:
— E porque essa curiosidade toda?
— Não sei. — e olha para a porta da
Igreja. — É uma sensação, um aperto no peito toda vez que penso nesse lugar.
— Mas parece abandonada de tão suja
e com esse mato alto. — fala Miguel e então analisa: — Mas duvido que se
realmente estivesse jogada a própria sorte os moradores de rua já não a teriam
transformado em casa. Vamos bater na porta e ver quem nos recepciona.
Miguel caminha até a grande porta
dupla de madeira e dá três batidas. Do lado de fora, é possível ouvir o eco das
batidas vindo do lado de dentro. Os minutos passam e nada ouvem. Miguel
novamente bate na porta, mas desta vez fazendo um pouco mais de barulho. Apenas
o eco das batidas é ouvido e depois seguido de um silêncio fúnebre.
— Será que está realmente
abandonada? — indaga Gabriel. — Alguém já deveria ter ouvido.
Nisso...
— Não adianta baterem rapazes. — uma
voz feminina ecoa as suas costas. — Já fiz isso, mas ninguém me atendeu.
Miguel vira levemente a cabeça para
trás e vê Raguel escorada no paralama do carro. Ela está usando um sobretudo de
couro bege e com os cabelos levemente caídos sobre o rosto.
— Vejo que vocês estão muito bem. —
fala ela.
— Mudou o visual, é? — pergunta
Miguel sorrindo.
— Dei uma modernizada. — e caminha
em direção a eles. — Já que o mundo resolveu mudar, então eu mudei também.
— E o que você veio fazer aqui? —
pergunta Gabriel sem rodeios. — Lembra-se de tudo?
— Sim, lembro de tudo. — responde. —
Até de coisas que eu adoraria esquecer. — e passa a mão no pescoço. — Mas
enfim, eu vim porque um homem apareceu para mim hoje de manhã e pediu que eu
viesse aqui.
— Um homem?! — e olha para Gabriel.
— Será o mesmo que apareceu para nós?
— Como ele era? — pergunta Gabriel.
— Alto, meio barbudo, usava um
sobretudo, bengala... mais ou menos isso. — responde Raguel descrevendo o homem.
— Eu o vi parado na minha frente e quando pisquei ele havia desaparecido. E
segundos depois ele sussurrou no meu ouvido o endereço daqui. E desapareceu na
multidão.
— Esse mesmo homem apareceu para nós
hoje pela manhã, mas não nos disse nada. — fala Gabriel. — Apenas ficou nos
olhando de longe e sumiu.
— Bom, vamos arrebentar essa porta e
entrar! — exclama Miguel caminhando em direção a porta da Igreja.
Ele pára há alguns metros da porta,
flexiona as pernas, impulsiona o corpo para frente e sai correndo em direção a
ela e a atinge com seu ombro. Mas é arremessado para trás com o impacto e sai
rolando pelo chão até bater em uma pedra.
— Ah... meu ombro. — reclama
segurando o ombro direito com a mão esquerda.
Gabriel se aproxima e estende a mão
para ele.
— Podia ter pedido minha ajuda. —
Miguel segura a mão de Gabriel e este o ergue do chão. — Vamos fazer isso
juntos.
Miguel bate as mãos nas roupas para
tirar o excesso de sujeira e água e os dois se preparam para golpear a porta.
Eles saem correndo e ao golpearem a porta, esta afunda e um estouro de madeira
quebrando é ouvido pelo lado de dentro. A porta se abre e os dois caem de
bruços dentro da Igreja. Miguel e Gabriel olham o interior do local e expressam
em uma pequena frase o que sentem ao vê-lo:
— Meu Deus!
A
Igreja é formada por uma primeira nave, com as luzes entrando por oito vitrais
— quatro em cada lado — e um mais a frente logo acima de uma imagem de um
duende crucificado. As paredes e os oito pilares são revestidos de crânios
humanos e animais ligados por um cimento pardo. A abóbada é pintada com motivos
alegóricos à morte. No chão, os azulejos de cerâmica ou estão arrancados ou
danificados. O mobiliário composto por longos bancos estão em sua maioria
podres ou quebrados e o altar se encontra atirado em um canto.
Raguel passa por eles e seus olhos
percorrem todo o interior da Igreja. Incrédula com o que ela está vendo,
múrmura:
— Que lugar demoníaco! Jamais pensei
que um dia entraria em um lugar como este. Isto cheira a morte.
Nisso, Miguel e Gabriel já estão
parados ao lado dela.
— Eu diria que esta Igreja é
bastante macabra. — comenta Miguel movimentando seus dedos nervosamente. — E
sinceramente, isso é mais assustador que aqueles zumbis.
— Pode até ser. Mas agora que
estamos aqui — Gabriel dá um passo à frente —, vamos ver o que encontramos.
Gabriel segue caminhando logo a
frente e Miguel e Raguel seguem logo atrás, olhando para os lados e para os
vitrais — extremamente atentos a qualquer movimento estranho. — Miguel sente
seu corpo tremer involuntariamente, no seu interior ele não gostaria de estar
ali. Mas sim deitado em sua cama.
— Está tudo bem Miguel? — pergunta
Raguel.
— Sim. — responde ele, colocando as
mãos nos bolsos da calça.
Eles chegam ao fim da nave e vêem um
estreito corredor a direita. Ao seguirem em direção ao corredor, em uma das
paredes há uma pequena entrada em arco lacrada com cimento.
— Que curioso. — comenta Raguel. —
Porque lacrariam uma porta? — indaga. — Será que queriam esconder alguma coisa?
— e olha para Miguel.
— Eu nunca cheguei a entrar nessa
Igreja. A única pessoa que vinha aqui era a Jenny. Então não conheço nada aqui
dentro. Tudo para mim está sendo uma novidade macabra.
— Bom, vamos continuar. — fala
Gabriel tomando as rédeas do comando.
Ao adentrarem o corredor, suas
paredes são ornamentadas com crânios, tíbias, vértebras e fêmures que formam
vários desenhos. Desde efeitos florais utilizando vértebras e clavículas que
ajudam a compor a foice, instrumento da morte personificada em um esqueleto.
Conforme avançam, Miguel sente seu
nervosismo aumentar. Ele está suando frio e suas mãos não param de tremer
dentro dos bolsos de sua calça. Cada vez que olha para as paredes, é como se
estivesse vendo a morte na sua frente, ou então em meio a centenas de
mortos-vivos sem poder se defender. E isso o assusta bastante. Em
contrapartida, seus amigos parecem mais curiosos do que preocupados ou
temerários há alguma coisa.
Nisso, Gabriel pára e aponta para o
chão do corredor que vira a direita logo a frente deles.
— Tinta?! — indaga Raguel.
Gabriel passa o dedo e constata ser
outra coisa. Uma pequena poça de sangue está formada no chão e há frente, um
longo rastro de sangue segue pelo corredor. Como se algo ou alguém tivesse sido
arrastado por ali. Raguel dá uma breve olhada nas paredes e vê sangue espirrado
nelas.
— Vamos embora. — Miguel opina
achando ser o melhor a fazer. — Isso aqui já está ficando tenebroso demais. Não
sabemos o que vamos encontrar mais a frente e não trouxemos nada para nos
defendermos ou lutarmos. Seja lá o que for não estamos preparados. — fala
hesitante.
— Você está com medo? — pergunta
Gabriel.
— Não é medo. — responde Miguel. — É
outra coisa, sei lá. Mas eu não estou me sentindo bem aqui. Estou com um mau
pressentimento quanto a isto.
— Eu não vim até aqui para ir
embora. — exclama Gabriel. — Eu vou até o fim agora. Se você quiser ir embora
pode ir. Digo o mesmo para você, Raguel, se quiser ir também não tem problema.
— Eu ir embora? — ironiza. — Sem
chances!
— Eu não vou deixá-los sozinhos. —
fala Miguel. — Seja o que Deus quiser. Vamos em frente.
Eles seguem o corredor e após alguns
metros vêem uma porta onde o rastro de sangue termina.
— Deve ser ali. — fala Raguel. —
Estão prontos?
Gabriel e Miguel meneiam a cabeça
fazendo sinal de positivo. Eles seguem pé por pé e ao chegarem à porta, se
deparam com um salão oval todo ornamentado em ossos com um grande lustre
formado por restos humanos que domina o espaço central do teto. É um lustre
formado por fêmures, escápulas, vértebras, que foram complexamente elaboradas
em uma terrível peça central. No centro desse salão, há uma mesa de madeira
onde uma mulher loira jaz deitada com seus braços esticados para fora da mesa e
sangue ainda escorrendo pelo pescoço. E próximo da mesa, um homem alto usando
uma túnica preta, capuz — que esconde seu rosto — e uma estola vermelha sobre
os ombros, caminha segurando em uma das mãos — pálidas por sinal — uma pequena
cumbuca e na outra um livro velho de capa de couro.
— Para perfume misturai farinha & mel & grossa
borra de vinho tinto: então óleo de Abramelin e óleo de oliva, e depois
amolecei & amaciai com rico sangue fresco. — fala o homem em voz alta lendo o livro.
Ele caminha até onde o sangue escorre e segura a
pequena cumbuca de forma que o sangue escorra dentro dela. Após encher com uma
boa quantidade de sangue, continua a ler o livro:
— O melhor
sangue é da lua, mensal: então o sangue fresco de uma criança, ou pingando da
hóstia do céu: então de inimigos: então do sacerdote ou dos adoradores: por
último de alguma besta, não importa qual.
Ele deposita a pequena cumbuca sobre
a mesa e pega uma colher de pau e começa a misturar o que quer que tenha ali
dentro.
— Isto queimai: disto fazei bolos & comei para me.
Isto tem também um outro uso; seja depositado diante de me, e conservado
impregnado com perfumes de vossa prece: encher-se-á de escaravelhos como se
fosse e coisas rastejantes sagradas a me. Estes matai, nomeando vossos
inimigos; & eles cairão diante de vós. Também estes engendrarão ardor &
poder de ardor em vós ao serem comidos.
O homem eleva a cumbuca até a boca e
toma o líquido alaranjado e grosso que escorre dela.
Raguel olha para Gabriel e sussurra:
— O que fazemos agora?
— Nada. — responde. — Vamos apenas
observar esse ritual dele.
Nisso, o homem termina de tomar o líquido
da cumbuca e a joga no chão. E então vai mexer no corpo da mulher que está
deitada sobre a mesa.
— Eu sinceramente na faço a menor idéia do porque você veio até aqui. Mas
me poupou o trabalho de procurar uma garota virgem. — e vira o rosto dela
de forma que Miguel e os outros conseguem ver o rosto da garota. — Agora é só jogar você por aí e será apenas
mais um caso de assassinato.
De imediato, Miguel reconhece a
garota.
— Anane. — sussurra. — Não...
— A menina que se sacrificou por nós
no Shopping? — pergunta Raguel incrédula.
Miguel nada responde. Apenas sente
seu corpo arder em fogo e todo aquele nervosismo se transformar em pura raiva.
Seus olhos castanhos adquirem um brilho diferente e então de imediato se posta
em frente a porta e esbraveja:
— Você não vai jogá-la por aí! Eu
não vou deixar!
O homem vira-se para ele e de dentro
da escuridão do capuz, os olhos brilham em tom vermelho sangue.
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