O dia começou com um calor escaldante, mas agora as nuvens começam a tomar conta do céu e o azul que antes o pintava, agora se torna aos poucos cinza escuro. Aquela sensação de abafado começa a se dissipar e uma brisa gelada passa a soprar.
— O tempo está mudando. — fala Miguel olhando para o céu. — Em breve vai chover forte.
— Então antes que escureça ainda mais precisamos pegar o que viemos buscar e sair o mais rápido possível das ruas.
— Concordo, vamos entrar então. — fala Miguel enquanto desembainha sua espada. — Está pronta?
— Sim. — responde Raguel empunhando o bastão.
Os dois atravessam a rua e entram no hipermercado pelo estacionamento que fica no subsolo. O cheiro de podridão parece tomar conta do ar e os dois levantam a gola de suas camisas tapando o nariz e a boca. Há vários carros estacionados e alguns batidos de forma que é possível perceber que o acidente ocorreu quando tentavam sair do local. Olhando mais a frente é possível ver alguns restos de corpos destroçados já em decomposição.
— Que nojo! — fala Raguel passando ao lado de um corpo com a cabeça destroçada e parte do cérebro espirrado no chão cheio de vermes.
— Tente não ficar olhando que é pior.
— Claro, vou ignorar o que está a minha volta em tudo quanto é lugar. O problema é que até agora eu evitei chegar muito perto de um cadáver.
— Vamos continuar. — sussurra Miguel entrando por uma porta de vidro que dá acesso as escadas rolantes que levam a parte superior onde fica o hipermercado.
Eles passam em frente a uma loja de roupas, as famosas surf shops, e Raguel comenta:
— Seria uma boa idéia pegarmos algumas roupas depois.
— Pensamos nisso mais tarde. Nosso foco principal é outro.
Eles param em frente às escadas rolantes e avistam corpos caídos sobre elas, alguns ainda com carne e outros já completamente sem, apenas uns amontoados de ossos. Então eles sobem as escadas abaixados e quando chegam lá em cima podem ver a praça de alimentação logo à frente e a direita as caixas do hipermercado ainda com mercadorias em cima e claro, mais corpos espalhados pelo chão.
— Precisamos pegar um carrinho. — fala Raguel olhando para os lados.
Miguel se vira para a esquerda e diz:
— Esse aqui vai servir, pegamos outro mais a frente.
Ele sai empurrando o carrinho e Raguel avista outro vazio e o pega. O hipermercado é cheio de corredores divididos por seções, cada uma correspondendo a um tipo de alimento, outro a bebidas, eletroeletrônicos e utensílios em geral. Miguel pára e fica olhando em direção aos corredores e pergunta para Raguel em qual corredor iriam primeiro, ela olha para ele e responde: — Vamos seguindo a ordem e depois voltamos. — Então eles começam a seguir em frente bem devagar, seguindo passo a passo como se fossem encontrar um morto-vivo à frente. O primeiro corredor a entrarem é o de limpeza, Raguel pega alguns produtos de limpeza e panos. E eles seguem em frente entrando no próximo corredor que é o de higiene pessoal. Miguel sai catando várias coisas e coloca no carrinho dela.
— Porque está colocando no meu? — pergunta ela.
— Acho melhor assim. Não misturamos com alimento.
Eles passam por alguns corredores que julgam não ter nada que possam precisar e chegam à parte de enlatados. Miguel larga o carrinho e diz:
— Pegue tudo que você achar necessário. Você fica desse lado do corredor e eu do outro. Largue tudo no meu carrinho.
— Tá bom.
Eles juntam tudo que julgam necessários e colocam no carrinho, fazem isso várias vezes. Então partem para o próximo corredor onde pegam bastante biscoitos, salgadinhos e chocolates. O carrinho de Miguel já está quase cheio. Então Raguel diz:
— Não temos alternativa. Vamos largar no meu também. Dane-se ficar tudo junto. Na atual condição que estamos não podemos ficar escolhendo como vamos fazer as coisas, se fosse em outra época seria cabível, hoje não é mais.
Miguel concorda e então eles continuam pegando mais coisas nos próximos corredores, pegam leite de caixinha, refrigerantes, ração para o filhote, açúcar, sal e muitas outras coisas. Enchem os dois carrinhos e então Miguel olhando para as janelas diz:
— Já está chovendo.
— Estávamos tão entretidos em busca dessas coisas que nem nos demos conta. — sorri Raguel.
— Que sorriso bonito. — elogia Miguel. — É bom ver que ainda a lugar para um belo sorriso nesse mundo. — Raguel agradece e ele continua, — Pensei que nunca mais veria um novamente.
— Pois viu. — fala ela passando a mão nos cabelos. — Mas agora precisamos sair daqui. Não confio nesse lugar.
— Estava pensando exatamente nisso. Para onde vamos? — indaga ele.
— Para onde você estava indo quando o encontrei? — pergunta ela.
— A procura dos meus amigos em Canoas. — responde. — Ia seguir até a linha de trem e depois rumar para lá.
— Certo. Acho que podemos fazer isso amanhã. Já está escuro demais para pegarmos a estrada. — diz apontando para a janela. — E a chuva não ajuda em nada, só ajuda a piorar. Estava pensando, que tal irmos para a minha casa e passarmos a noite lá? Amanhã rumamos para Canoas e com o dia claro será mais fácil de enxergar o que nos espera a cada rua.
— Você tem razão. Vamos para a sua casa e amanhã seguimos em frente.
Nisso o filhote começa a latir e eles ouvem barulhos vindo de dois corredores atrás. Miguel pega a espada que estava em cima do carrinho e diz:
— Faz o filhote parar de latir que eu vou ver o que é. Não sai daqui.
— Tá bom. — responde ela pegando o filhote na mochila.
Miguel sai caminhando bem devagar com a espada em punhos e pára quando chega ao fim do corredor e espia para ver se enxerga alguma coisa, mas não vê nada. Então ele vira-se para trás e faz sinal para Raguel que vai seguir em frente. Ela apenas faz sinal com a cabeça que sim. Miguel passa pelo próximo corredor e quando encosta-se nas prateleiras para espiar ouve um grunhido bem próximo de onde ele está e de repente ao seu lado surge uma cabeça putrefata com nacos de carne cheias de vermes e partes do crânio amostra. O zumbi cambaleante vira-se para Miguel e seus olhos sem expressão, frios como a morte o fitam de forma ameaçadora. Então instintivamente ele crava a espada pelo glóbulo ocular do zumbi fazendo-a atravessar o cérebro da criatura e este cair com seu corpo apodrecido ao chão. Ele retira a espada do crânio da criatura e ao olhar para frente pode ver vários zumbis se dirigindo em sua direção.
— Merda! — pensa ele voltando correndo.
Raguel vê ele voltar correndo e com a espada suja e pergunta:
— O que houve?
— Zumbis! — responde. — Vários deles, muitos, uma dezena! Não sei de onde saíram. Vamos sair logo daqui.
Raguel coloca o filhote novamente na mochila e segura o carrinho e os dois saem correndo pelos corredores do hipermercado cada um com seu carrinho lotado de coisas. E mais a frente avistam mais zumbis e então vêem de onde eles estão vindo, da rua, por outra entrada. Eles desviam do caminho por onde estão vindo os zumbis e passam por entre os caixas do hipermercado e seguem rumo as escadas rolantes. Eles as descem rapidamente e chegam ao subsolo. Miguel olha para todos os lados e não avista nenhum zumbi. Então eles correm em direção à saída e na rua avistam mais zumbis.
— Eles estão vindo de todos os lados! — fala Raguel apavorada.
— Esquece eles! Precisamos ser rápidos e guardar tudo o que pegamos.
Eles chegam até o carro e Miguel abre a porta e procura pela alavanca que abre o porta-malas que fica ao lado do banco na parte de baixo. Ele a acha, puxa a alavanca e abre o porta-malas. Volta correndo para trás do carro e os dois começam a jogar tudo lá dentro. E cada segundo que passa os zumbis se aproximam mais dos dois. Raguel vê que eles estão perto demais e diz:
— Termina de carregar o carro que eu vou me livrar deles!
— Não, fica aqui!
— Faz o que eu estou dizendo! — fala ela com voz firme. — Eu sei me virar. — e sorri para ele.
Até então Raguel nunca havia entrado em confronto com um zumbi, pelo seu corpo passava uma sensação de ansiedade e medo. Mas eram sensações que ela não deixava aflorarem. Então ela corre em direção a um dos zumbis e ergue seu bastão e ao girá-lo no ar acerta em cheio a cabeça do zumbi fazendo este cair violentamente no chão com seu crânio afundado. Então ela sorri ao se ver sair triunfante de seu primeiro combate e se enche de coragem para ir para cima dos outros. Miguel olha para ela e só pensa em terminar de carregar o carro e correr para ajudá-la. Raguel derruba mais três zumbis e em questão de segundos se vê cercada por eles de uma maneira que não consegue mais ver seu parceiro de aventura. Ela ergue o bastão e pensa: — Se vou morrer, não vou dar o gostinho do medo para eles. — E nisso vê dois zumbis caírem no chão e Miguel aparecer em sua frente.
— Vamos! — fala ele estendendo a mão para ela.
Ela segura a mão dele e os dois saem correndo em direção ao carro. No caminho Miguel derruba um zumbi com uma espada na têmpora o fazendo voar ao chão. Eles chegam ao carro e ela entra e fecha a porta. Então ele dá a volta, entra e gira a chave. O motor ronca, e então ele engata a primeira marcha e pisa fundo no acelerador e os dois saem dali o mais rápido que podem. Raguel respira fundo e então olha para Miguel e com um sorriso no rosto diz:
— Obrigada por salvar minha vida. Te devo uma.
— Não me deve nada. — fala Miguel encostando a mão na dela. — Seu sorriso já pagou qualquer divida que você poderia ter comigo por mais de uma vida.
— Não seja bobo. — fala ela virando o rosto em direção a janela e sorrindo.
— Sério. — diz ele vendo o rosto dela pelo reflexo da janela. — Você me mostrou algo além de uma boca querendo me devorar. Mas um sorriso. Faz meses que eu não sei o que é isto realmente. Apenas imaginava para não ficar louco e ter algo para me fazer lembrar como era as coisas antes do mundo virar de cabeça para baixo. Se alguém deve alguma coisa aqui, esse alguém sou eu.
— O seu jeito de falar é diferente de todas as pessoas que conheci, eu sinto sinceridade na sua voz. É como se nos conhecêssemos há milênios. Antes mesmo da aurora dos tempos.
Miguel sorri e com um tom de voz suave diz:
— Obrigado. Depois de tanto tempo estou me sentindo vivo novamente.
— E para se sentir mais vivo ainda pegue a próxima rua a esquerda que eu vou lhe mostrar o caminho da minha casa. Quando chegarmos lá vou fazer algo para comermos. Peguei macarrão, carne enlatada e molho. Vou fazer uma janta bem gostosa e vamos encher a barriga até não agüentarmos mais.
Ela segue mostrando o caminho para ele e os dois chegam alguns minutos depois a casa dela. Uma grande casa de alvenaria com janelas verdes que fica protegida por um muro feito de grades grossas e altas. Eles colocam o carro na garagem e se ajeitam na casa. E antes e após o jantar eles conversam, brincam e dão muitas risadas, é como se já se conhecessem há tempos, talvez houvesse um pouco de verdade naquelas palavras que ela disse e que fizeram Miguel tão feliz. Ou talvez então não houvesse nada de especial, apenas palavras ditas num momento de agradecimento. Mas o certo é que fizeram um bem muito grande para os dois. Depois de meses sozinhos, essa será uma noite de sono em que ambos dormirão o sono dos justos. Terão de companhia a alegria que um trouxe para o outro e a certeza de que não estarão mais sozinhos enquanto um proteger o outro. Pois foi isso que fizeram hoje e que tornou essa ligação tão profunda entre eles possível.
O mundo pode estar em pedaços, mas enquanto houver ainda um pingo de vida na terra, milagres acontecerão.
essa poesia final foi tão boa que faria até Chuck Norris derramar uma lágrima T-T
ResponderExcluirE olha que a unica vez que Chuck Norris derramou uma lágrima foi quando choveu 40 dias e houve o dilúvio. Essa semana ainda já vou postar o 4º capítulo, está quase pronto. Num intervalo e outro do trabalho fiquei escrevendo. Então estou arrumando algumas coisas que não ficaram muito interessantes e adicionando alguns diálogos e ações, para dar mais emoção.
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