Quatro dias se passam e Arádia está
caída no chão da cela visivelmente debilitada pelos dias sem comida, pois água
não lhe faltara já que a recebera todos os dias.
O sol do meio-dia está a pico e o
dia incrivelmente abafado. As dependências do alojamento são quase
insuportáveis de se agüentar em dias quentes e a cela então, é quase um
seguimento do Inferno de tão quente. Com dias assim, os soldados e os membros
do Clero ou ficam no pátio a sombra das árvores, ou buscam conforto nas sombras
criadas pelas altas construções. Devido a isso, as dependências ficam vazias e
se alguém quiser fazer algo sem ser visto, esta é a oportunidade perfeita.
Passos calmos são ouvidos no
corredor e Arádia ergue levemente a cabeça. Um soldado com seus vinte e cincos
anos de idade e semblante bastante humilde se aproxima da cela e agachando-se
diz:
— Vim lhe trazer esse copo de água,
minha senhora.
Arádia agradece e agarra o copo
bebendo toda a água que havia nele. Ela então segura as mãos do soldado e o
adverte:
— Você não deve mais vir aqui. Eu
ouvi uma conversa entre o Inquisidor e o chefe da guarda. Eles estão
suspeitando que alguém esteja me ajudando, então lhe peço para não aparecer
mais aqui. Não quero que seja morto por minha causa, já perdi alguém e não
desejo que sua esposa passe pela mesma dor que a minha.
— Eu lhe ajudo porque acho um
absurdo o que estão fazendo com você. E do fundo do meu coração, aquele homem
não era um demônio porcaria nenhuma, era um anjo em toda a sua magnitude. Eles
mataram um anjo do Senhor. E eu tenho medo do que possa acontecer conosco
depois disso. — confessa. — Eu temo por todos. — e enche os olhos de água.
— Com esse pensamento, o seu lugar
no céu está garantido. — o conforta. — E ele não era um anjo, era um Arcanjo. O
Arcanjo Miguel.
O soldado cai para trás e então se
recompõe dizendo estupefato:
— Você está me dizendo que ele era
um dos sete Arcanjos do Senhor?
— Exatamente, meu querido. —
responde. — Agora vá embora. Ouço passos se aproximando daqui.
O soldado se despede e sai
caminhando a passos largos por outro corredor. Nisso, o Inquisidor chega à cela
acompanhado de três soldados e outras dez pessoas, todos homens. Ele abre a
cela e ordena que os soldados entrem e prendam Arádia nas correntes virada de
costas para eles. Os soldados a prendem pelas pernas e pulsos e então o
Inquisidor adentra a cela.
— Presa como o animal que é. Ah,
lembra-se o que eu havia dito antes de partir aquele dia? — Arádia nada
responde. — Desculpe pela pergunta, esqueci que você estava desacordada. Mas
enfim, vou repeti-la para você ouvir. Está vendo estes dez homens que vieram
comigo? — e Arádia olha para trás com o canto do olho. — Viu? Que bom. Então,
cada um deles abusará de você da forma que bem entender. Esse é o castigo por
se deitar com o demônio. Você será usada e abusada por quantos quiserem e nada
poderá fazer para impedir.
E nisso, o Inquisidor rasga o
vestido que ela está usando, deixando-a completamente despida.
— Creio que não terá problemas
quanto isso. — fala o Inquisidor se referindo a ela ter ficado nua. — Já que não
teve nenhuma vergonha perante o demônio. Agora se me dá licença, vou me retirar
e deixar você a sós com eles. Espero que se divirtam.
O Inquisidor se retira e os soldados
ficam parados em frente a cela. Um dos homens entra trazendo em uma das mãos um
pequeno chicote de couro batido. Ao se aproximar de Arádia, gira o pequeno
chicote no ar e o faz descer com toda a sua força rasgando a pele das costas de
Arádia. Ela fecha os olhos e permanece calada, mesmo sendo fustigada por várias
chicotadas que vão abrindo feridas em suas costas, onde o sangue escorre por
seu corpo. O homem finalmente pára de chicotá-la e então arria as calças e
encosta seu corpo no dela. Ele lambe o pescoço dela e então a agarra pelas
coxas e Arádia deixa lágrimas caírem de seus olhos. E assim segue por mais sete
dias, chicotas, espancamentos e estupros.
Em outro mundo, uma ilha flutua
sobre o nada. Uma ilha com milhares de casas, estabelecimentos e densamente
povoada por anjos e humanos. Ao redor da ilha, uma bela planície com árvores
floridas embeleza o local. Mais para o interior, em meio às casas e os
estabelecimentos comerciais, uma suntuosa construção se destaca, o fabuloso
Castelo העליונים — Ha-elyonim
—. Sua base circular é enorme, de onde emergem quatro torres com centenas de
metros de altura e protegidas em seu topo por anjos fortemente armados.
Muralhas de pedra o protegem contra invasões terrestres. O Castelo em si, é uma
obra-prima da arquitetura gótica com vários andares e vitrais espalhados por
todos os lados contando a história desde a criação até o momento atual. Duas
grandiosas estátuas de leões embelezam a escadaria de entrada do Castelo.
Caminhando por um longo corredor, uma jovem
mulher-anjo carrega em seus braços toalhas brancas dobradas em retângulo. Ela é
uma mulher de pele clara, lábios vermelhos, olhos verdes e cabelos loiros encaracolados.
Ela é incrivelmente bonita e veste-se com uma túnica branca levemente
transparente. Ela se aproxima de uma porta dupla, que está entreaberta e
adentra o recinto. Deitado em uma cama no centro do quarto, está Miguel, com
suas asas recolhidas.
— Como está se sentindo hoje, General? — pergunta a
mulher.
— Melhor que ontem, Sariel, obrigado
por perguntar. — responde cordialmente. — Agora preciso me retirar. — e seu
semblante se torna sério. — Preciso salvar uma pessoa, pois não agüento mais
ouvir seus gritos em minha cabeça.
— Desculpe, mas não posso deixá-lo
sair daqui. — avisa.
Miguel levanta-se da cama e caminha
na direção de Sariel.
— Mesmo que eu não esteja em minhas
condições físicas ideais, eu continuo sendo um Arcanjo e você um anjo. —
explica. — Um abismo de poder nos separa. Então saia da minha frente antes que
se machuque. — adverte.
— Mesmo que a força que nos separa
seja gigantesca, irei confrontá-lo mesmo assim. — fala determinada.
— Se é assim que desejas, lhe
mostrarei do que um Arcanjo é capaz. — fala em tom de desafio.
E os dois assumem posição de
combate.
— Esperem! Não quero lutas no meu
Castelo!
Miguel olha para o lado e exclama:
— Gabriel, o Arauto dos Mistérios
Divinos! Lhe agradeço por me trazer de volta. Mas lhe amaldiçôo por não salvar
a mulher que amo! — e continua: — Faz sete dias que a ouço pedindo socorro e
ninguém foi ajudá-la! Nenhum maldito anjo foi ajudá-la! Vocês não fizeram nada
por ela!
— E nem iremos fazer. — declara
Gabriel. — E você também não irá!
— Você irá me impedir? — pergunta
cerrando os punhos.
— Você sabe muito bem que ela é a
encarnação de um deus pagão! Um deus que foi banido do mundo e que não sei
como, renasceu como uma humana. Um imundo deus pagão! — esbraveja.
— Eu não me importo com quem ela
seja! — rebate. — Todos merecem uma segunda chance! Inclusive a deusa Diana. E
a coisa mais triste desse mundo é duas pessoas estarem destinadas a se amarem e
tirarem isso delas. Foi exatamente o que vocês fizeram conosco!
E nisso, Rafael entra voando pela
janela e pousa graciosamente.
— Acalme-se Miguel. São as regras do
Céu e precisamos segui-las.
— Que se danem as regras, Rafael! —
protesta. — Cansei dessas merdas! Eu não desejo mais ser um Arcanjo, quero ser
livre e viver a minha vida. — acrescenta, lembrando de Arádia, a mulher que o
fez se sentir tão humano. — E a primeira coisa que farei é salvar a mulher que
eu amo! — e sai caminhando em direção a porta.
— Não posso permitir que você faça
isso! — fala Gabriel obstruindo a passagem de Miguel.
— Saia da minha frente! — ordena.
— Não irei! — replica.
Miguel gira seu corpo sobre os pés e
golpeia Gabriel com um soco no rosto. O golpe faz tremer a ilha inteira e pôde
ser sentido há anos luz dali. Gabriel é arremessado longe e atravessa algumas
paredes caindo do lado de fora do Castelo. Miguel vira-se para Rafael e este
diz:
— Eu não irei lhe segurar. Siga seu
caminho meu amigo e seja feliz.
Miguel se aproxima de Rafael e os
dois se abraçam fraternalmente. Após isso, ele se lança pela janela e alça vôo,
seguindo em direção a uma distante ilha.
Após algumas horas de vôo, Miguel
chega a uma ilha coberta por árvores e na parte central, exatamente no meio, um
pequeno palácio está localizado. Miguel pousa bem próximo do palácio e caminha
em direção a porta, nisso, dois Querubins saem de dentro e barram a entrada
dele. Um dos Querubins é Surya e o outro é um homem com mais de 2,10 metros,
cabelos negros compridos e lisos, olhos negros, aspecto bárbaro e muito forte.
Além disso, está vestindo uma armadura reluzente de cor prata.
— O que deseja Arcanjo? — pergunta o
Querubim.
— Eu vim falar com o Altíssimo. —
responde seriamente.
Com uma velocidade sobrenatural, uma
mulher-Arcanjo pousa ao lado de Miguel e exige explicações:
— Mestre Miguel, é verdade o que
estão dizendo? Você atacou o Arcanjo Gabriel? É verdade isso? Eu preciso de
explicações!
— É verdade sim, Raguel, não irei
mentir para você minha amiga.
— E por que fez isso?
— Pelo motivo ao qual estou aqui. Eu
desisti de ser um Arcanjo, eu quero viver na Terra ao lado da Arádia. Desculpe
não ficar mais tempo aqui com você, mas preciso ser rápido se eu ainda quiser
vê-la viva.
— Então eu irei junto. — declara
surpreendendo Miguel. — Não permitirei que você ande sozinho pela Terra. Lá não
é como aqui, o perigo ronda a cada esquina.
— Espera. Não. Eu não quero que você
vá. Isso não é um motim, ou algo parecido, eu só estou indo embora para viver a
minha vida. Você está condicionada a viver aqui. Nunca foi a Terra, o que você
sabe são o que os anjos contam. Mas eu já fui várias vezes e sei como as coisas
funcionam. E o principal, alguém precisa comandar os exércitos e eu sei que
esse alguém só pode ser você.
— Eu tive o melhor mestre. — e
sorri.
— Agora me deixei ir. Um dia quem
sabe eu retorno. Até lá, mantenha a ordem aqui em cima.
Raguel suspira e abraça Miguel.
— Eu vou sentir a sua falta.
— E eu sentirei a sua. — fala
retribuindo o carinho. — Até breve.
Os dois Querubins abrem caminho para
ele e Surya diz:
— Boa sorte na Terra.
Miguel sorri para ela e adentra o
palácio. Ao cruzar a porta, ele sente um vento frio que gela a sua espinha. A
iluminação é feita por dois braseiros que não emanam calor nenhum. O local é
todo feito de granizo branco e logo a frente, um majestoso trono de pedra se
recosta no recuo da parede norte. No lado esquerdo, um pequeno altar oferece
espaço para uma pessoa acender velas e rezar.
Miguel dá alguns passos e pára. Ele
olha para os lados, mas o salão estaria completamente vazio senão fosse pela
própria presença dele. Miguel pensa um pouco e então diz:
— Altíssimo, eu queria lhe suplicar
um favor.
— Diga meu filho. — uma voz calma e
cheia de paz ecoa pelo recinto.
Miguel olha para os lados, mas não
vê ninguém.
— Eu desejo não mais ser um Arcanjo.
Eu quero viver entre os humanos.
— Eu já sabia, mas desejei do fundo
do coração que fosse um engano. Mas me diga por que isso?
— Bom, Altíssimo, eu me apaixonei
por uma humana, na verdade a reencarnação de uma deusa pagã. Me desculpe por
isso, mas quero viver esse sentimento que estou sentido. — justifica. — Então
se puder realizar esse meu pedido, quero que o faça.
— Miguel, você sempre esteve lutando
ao lado de seus companheiros. Enfrentou inúmeras batalhas, expulsou o seu irmão
Lúcifer, creio que o que fez por nós lhe garante esse pedido. — constata. — Mas
antes de ir, terei que tirar algo de você.
— As minhas asas, eu sei, assim como
tirou as do meu irmão — relembra. — Não precisarei delas para onde irei. Lá, só
os pássaros voam. E eu não sou um. Mas se um dia precisar de mim novamente, é
só me chamar que estarei pronto para lhe defender.
— Fico feliz em saber disso. E eu
não estou triste ou bravo por ter se apaixonado por ela, afinal, fui eu quem
permitiu que ela encarnasse. E ela vem cumprindo os desígnios dela muito bem,
pois está trazendo a liberdade para as classes oprimidas pelo clero e pela
nobreza. E vem demonstrando um grande amor pelos necessitados desde a sua
infância. Ela é uma grande pessoa meu filho.
— Foi por isso que me apaixonei por
ela, Senhor.
— Perco o meu principal general e a
Terra ganha um fervoroso defensor dos necessitados... — uma curta pausa se
segue. — Então, está preparado?
— Sim, Senhor. — responde Miguel
fechando os olhos. — Pode começar.
Tudo escurece e, em questão de
segundos, Miguel surge na Catedral de Santa Reparata. Suas roupas agora são
terrenas e seu ar angelical não mais se faz presente. Ele lentamente leva as mãos
as costas e nota que suas asas não mais fazem companhia ao seu corpo. Seu
desejo foi atendido e agora ele não passa de um humano, como era o seu desejo.
Por um momento, o motivo que o fez se tornar um Caído foi superado pelo
pensamento de que agora ele não é mais um Arcanjo e, portanto, qualquer arma
criada pelo homem agora pode tanto matá-lo, quanto feri-lo. De repente, o
motivo pelo qual se tornou o que é agora, volta a dominar seus pensamentos.
— Arádia! — exclama e sai correndo
em direção a porta da Catedral.
Miguel sai da Catedral e segue correndo
por entre prédios e casas até chegar a uma ponte. Ele cruza a ponte e entra em
uma pequena viela que o leva direto a praça que fica em frente ao alojamento
dos soldados. Ele encosta-se em uma pequena mureta de concreto e fica
observando o movimento que ocorre no local. Montada no centro da praça há uma
cruz de madeira em tamanho grande com dezenas de pedaços de madeira ao redor,
formando uma pira.
— Típico deles. — pensa Miguel,
apenas observando e apoiando sua mão na mureta. — Após os dias de tortura,
queimam em praça pública para mostrar que devem ser temidos. Um comportamento
inferior a um animal. — e acaba enterrando os dedos na mureta. — Força? — com
uma pressão sobre a mureta, acaba por destruí-la. — Obrigado por me deixar com
força suficiente para enfrentá-los. — agradece, olhando para cima.
— Miguel. — uma voz masculina o
chama.
Miguel permanece sem se mover por
alguns segundos e então se vira para trás.
— Quem? Camael... Que grata
surpresa. — se alegra ao ver o amigo.
— Vim lhe ajudar a pedido de Rafael.
Ele se preocupa muito com você.
— Eu sei. — e ao observar melhor o
amigo, repara que este está sem suas asas. — Não me diga que também virou
humano?
— Não, mas Surya me ajudou com uma
de suas técnicas a esconder minhas asas. — responde Camael e Miguel solta um
suspiro de alívio. — Infelizmente não dura por muito tempo, então o que quer
que esteja planejando, precisamos agir rápido. — avisa.
— Bom, pela movimentação que está
ocorrendo na praça, eles pretendem queimá-la em uma pira para que toda a
população possa ver. — explica. — Não sei que hora isso irá ocorrer, mas pela
agitação das pessoas, creio quem não será tarde.
— E o que tem em mente? — pergunta
Camael um tanto curioso sobre qual tática seu ex-general irá basear o resgate.
— O plano mais simples de todos. Um
ataque frontal. — responde surpreendendo o anjo guerreiro.
— Mas agora você não possui mais os
poderes celestiais. — lembra o amigo. — Qualquer ferimento pode lhe ser fatal.
— avisa.
— Não sei quais dos meus poderes
perdi, mas o fato é que um deles continua comigo. A minha insuperável força. —
e demonstra quebrando um pedaço de outra mureta apenas a pressionando com a
palma de uma das mãos. — Viu?
— Isso já facilita as coisas. —
constata. — Por um momento temi por você, mas vejo que minha preocupação foi
apenas excesso de zelo.
Miguel retribui o comentário com um
sorriso.
Segundos depois, um movimento de
soldados começa a ocorrer em frente ao alojamento e eles se posicionam de forma
a criar um corredor humano. Assim que o corredor se forma, o Inquisidor surge
vestindo uma batina vermelha com detalhes em branco e carregando na mão direita
uma tocha acessa. Miguel o olha e seus olhos se enchem de raiva. E logo atrás
do Inquisidor, dois soldados trazem Arádia presa a grossas e pesadas correntes
de ferro. O estado de Arádia é deplorável, está toda suja de terra e sangue, e
marcas de violência física se espalham por todo seu rosto e corpo.
— O que fizeram com você... —
pronuncia Miguel a olhando. — Mas não se preocupe que em breve a libertarei das
garras desses monstros.
— Como sempre foi e será, meu amigo,
eles jamais aceitarão aqueles que são diferentes e não se encaixam em suas
perfeitas sociedades. — comenta Camael.
— Desde a criação é assim. — acrescenta.
— Muitas vezes eles valem menos que os vermes que habitam o interior da Terra.
Os soldados levam Arádia até o
centro da praça e a jogam ao chão, seu corpo bate nas pedras e sangue escorre
de um ferimento aberto. O Inquisidor toma a frente e vira-se em direção a
população e pronuncia:
— Hoje é um grande dia para a nossa
cidade! Vejam quem temos aos nossos pés nesse dia quente de verão!
A população passa a cuspir nela e
alguns jogam frutas e legumes estragados. Os objetos jogados a acertam no rosto
e pelo corpo.
— Isso mesmo! — Incentiva o
Inquisidor com um sorriso maldoso nos lábios. — Joguem o que tiverem as mãos
nessa mulher imunda! A Rainha das Bruxas queimará hoje!
E a população que ali está comemora
aos gritos com a declaração de que a bruxa será queimada.
Há alguns metros dali, Miguel olha
para Camael e diz:
— Chegou a hora.
Camael assente com a cabeça e os
dois saem correndo lado a lado em direção a praça.
Um homem junta uma pedra no chão e a
arremessa em direção a Arádia. Miguel salta sobre um dos bancos da praça e num
rápido movimento interrompe a trajetória da pedra a segurando em sua mão. E de
imediato fuzila o homem com os olhos.
— Jogar pedras em quem não pode se
defender é muito fácil. — acusa. — Quero ver fazer isto comigo! — desafia.
Enquanto isso, Camael já derruba
alguns soldados.
O homem que havia jogado a pedra
recua e é seguido por algumas pessoas. Miguel se posta em frente a Arádia e se
agachando pergunta:
— Tudo bem com você? Eu sei que não,
mas...
Arádia apenas ergue levemente o
olhar.
— É você Miguel? — balbucia.
— Sou eu sim, meu amor. — responde.
— Me perdoe pela demora em vir lhe buscar. Mas agora tudo ficará bem.
— Eu morri? — pergunta fechando os
olhos.
— Não. — responde carinhosamente. —
Mas deixemos para conversar depois, teremos tempo para isso. Agora vou tirá-la
daqui.
Miguel segura uma das correntes e a
quebra facilmente e logo após joga-a longe. Assim, liberando as mãos de Arádia.
Ele se encaminha até os pés dela e faz a mesma coisa, liberando-a totalmente do
suplicio das correntes. Apavoradas, algumas pessoas saem em disparada para suas
casas. Miguel agarra Arádia carinhosamente em seus braços e alguns soldados se
lançam em sua direção. Camael se põe na frente dos dois e intercepta os ataques
dos soldados e os golpeia ferozmente, arremessando-os longe.
— Tire-a daqui. — fala Camael
segurando um soldado que o atacou. — Eu consigo derrotá-los sozinho!
Miguel assente com a cabeça e sai
correndo dali com Arádia em seus braços. Ele percorre alguns quarteirões e
chega a um local descampado, onde ao longe avista o telhado de um mausoléu.
— Acabei de avistar um local onde
poderemos nos esconder e então cuidarei de seus ferimentos. — fala Miguel.
Arádia abre os olhos e com um rápido
correr de olhos, reconhece o local.
— Este é o caminho que leva ao
cemitério. Muitas pessoas têm medo de se aventurar por aqui. Dizem que o lugar
é amaldiçoado. — comenta.
— Melhor assim. — afirma.
Miguel segue em frente, e conforme
vai avançando percebe que as plantas e os animais que ali estão, parecem
abatidos, doentes, vítimas de alguma força sobrenatural. E conforme ele avança
mais, a sensação se torna ainda mais evidente. Após vencer alguns matos altos,
ele divisa ao longe os restos de um velho muro, e mais adiante numerosas
lápides. Mais ao fundo, se encontra o mausoléu.
— Que coisa estranha... — comenta
Miguel.
— Que é? — pergunta Arádia.
— Veja com seus próprios olhos. —
responde.
Enquanto se aproximam, várias
figuras humanas vagam pelo cemitério, parecem pessoas vestidas com farrapos,
mas elas movem-se de forma cambaleante.
— Mortos! — exclama Arádia. — Só
pode ser obra de algum necromante!
— Mas o que um necromante estaria
fazendo aqui?
— O melhor lugar para treinar suas
técnicas de controle de mortos é o cemitério. Há anos essa técnica é passada de
geração a geração, mas apenas aqueles que desejam o mal é que a dominam.
Conforme Miguel vai avançando, os mortos
percebem a aproximação e rumam em sua direção. Com rápidos movimentos de perna,
Miguel vai golpeando um por um e os jogando longe. O impacto dos golpes muitas
vezes acaba por mutilar as criaturas. Atacando e avançando, Miguel chega às
portas carcomidas do mausoléu e adentra. Com um rápido movimento ele fecha a
porta e se depara com o mau-cheiro quase insuportável do local. Com um rápido movimento
de olhos, ele encontra a origem do fedor horrível. Montes de detritos de animais
mortos e também partes humanas. Com uma olhada mais apurada, ele observa
algumas figuras sinistras recurvadas sobre a podridão, devorando esfomeadamente
a carniça. Alguns levantam as cabeças e ao cheirarem o ar, se viram na direção
de Miguel e Arádia. O ataque é rápido. Miguel só tem o tempo de se esquivar e a
criatura arrebenta a cabeça na porta. Não podendo utilizar as mãos, já que está
carregando Arádia em seus braços, ele se utiliza das pernas tanto para atacar,
quanto para se defender. Em poucos segundos as criaturas estão caídas no chão com
seus corpos despedaçados e não demonstram mais serem ameaças.
— Acabou. — fala Miguel respirando
mais aliviado.
Ele coloca Arádia sentada no chão
com as costas apoiadas na parede e senta ao lado dela. Enquanto vai limpando os
ferimentos com um pedaço de sua camisa, ele conta para ela tudo o que aconteceu
com ele até o momento atual. Arádia ouve tudo o que ele conta com um misto de
admiração e amor. Já que não é sempre que um Celestial desiste de sua vida no
céu para viver uma vida mortal. Após ele contar, ela o abraça fortemente e
desaba a chorar. Nesse momento, um raio de luz invade o mausoléu e banha o
jovem casal. Os ferimentos causados a Arádia vão aos poucos desaparecendo e sua
integridade física vai se recuperando até chegar ao ponto em que tudo o que foi
feito a ela virá apenas uma memória ruim. Miguel olha para o céu e o feixe de
luz desaparece, com um sorriso, ele agradece pela benção. Arádia esfuziante se
levanta do chão e gira sobre os pés, dança sorrindo de alegria. Miguel apenas a
admira, parecendo uma criança que observa pela primeira vez o pôr-do-sol.
Passos pesados ecoam do lado de fora
e uma voz gutural grita pelo nome de Miguel.
Arádia pára de dançar e olha para
Miguel.
— Quem o está chamando?
— Não sei — responde —, mas pela voz
eu desconfio que seja um demônio. — mais uma vez o nome de Miguel é chamado.
Ele olha para Arádia e diz: — Fique aqui enquanto eu vou falar com ele. E em
hipótese alguma saia daqui, não importa o que ouvir. Entendeu?
— Entendi. — afirma, e então o fita
profundamente e, com um ar de ternura, beija-o suavemente na face.
Miguel a abraça, retribuindo o gesto
de carinho, e então abre a porta.
Um homem alto, extremamente forte e
trajando uma armadura completa de cor negra o está esperando. Quando Miguel
sai, o homem sorri e diz:
— Pensei que teria que ir buscá-lo
lá dentro. Mas estou vendo que mesmo tendo se tornado um humano, não virou
também um covarde.
— Não importa a situação em que eu
me encontrasse, jamais eu seria um covarde, Asmodeus. — declara.
— Percebo que ainda lembra-se do meu
singelo nome, ex-Celestial. — e sorri, mostrando os dentes amarelos.
— Infelizmente você não morreu
quando o entreguei para as autoridades na cidade, então vim fazer isso
pessoalmente. Pois como diz o velho ditado, “se quer um serviço bem feito, faça
você mesmo”.
Com um forte impulso, Asmodeus se
lança sobre Miguel e o atinge com um soco no rosto. Miguel sai deslizando pelo
chão e atinge uma das lápides a destruindo. Sangue brota de sua boca e ele
cospe no chão.
— Ficou mais fraco, hein Arcanjo?
Está até sangrando. —rejubila-se, Asmodeus, com o momento.
Miguel se ergue do chão e corre na
direção de Asmodeus o atacando como um verdadeiro guerreiro. Uma seqüência de
chutes e socos é desferida, mas Asmodeus se esquiva de alguns e defende-se de
outros facilmente. Asmodeus deixa Miguel atacá-lo freneticamente e percebe que
o ex-Arcanjo está se tornando mais lerdo e sua respiração ficando mais ofegante
a cada golpe desferido. Asmodeus o golpeia com um soco e Miguel cai sentado no
chão.
— Sabe qual o problema em se tornar
humano? É que você se torna fraco, se cansa mais rápido e infelizmente não pode
mais matar um demônio como eu sem suas armas celestiais. Pena, né? — e caminha
na direção de Miguel. — Eu pelo contrário, posso lhe matar com apenas um dedo e
sem qualquer esforço. E hoje irei me vingar pela morte de meus filhos.
Nisso, Arádia abre a porta do
mausoléu e se posta sobre a pequena escada de madeira e fecha os olhos. Um
vento não natural começa a soprar e nuvens negras surgem no céu.
— Não está mesmo pensando em me
atacar com magias, né bruxa?
Miguel fita-o e diz:
— Creio que seu ar de superioridade
será esmagado.
Asmodeus franze o cenho em uma
expressão confusa. Afinal, o que aquele ex-Arcanjo, agora caído no chão e
humilhado, queria dizer com tais palavras? Ele estava vencido e uma mulher que
solta faíscas das mãos jamais seria páreo para ele.
Estrondos ecoam nas nuvens e um raio
cruza os céus seguindo na direção de Asmodeus. Este apenas sorri e então
gigantescas asas brancas apontam em frente ao raio e Camael surge carregando
sua espada mística. Sem qualquer reação de Asmodeus, Camael o atinge com a
espada rasgando seu ventre e logo em seguida, seu corpo é atingido por uma
violenta descarga de energia. Asmodeus é jogado longe e Camael voa e fica
parado na frente dele com sua espada apontada para o pescoço do demônio.
— Seu fim chegou demônio imundo! —
declara Camael.
— Ainda não! — vocifera Asmodeus,
agora entendendo as palavras ditas por Miguel. — Eu sempre tenho um plano de
fuga...
E seu corpo explode em uma densa
fumaça negra que logo desaparece.
— Típico dos demônios. — comenta
Camael.
Ele então caminha até Miguel e o
ajuda a se levantar. Arádia corre até os dois e se abraça em Miguel.
— Tudo bem com você? Ele te feriu
muito? — pergunta Arádia ávida por respostas.
— Está tudo bem comigo. — responde.
— Meu corpo está menos ferido do que meu ego. — e sorri.
Camael olha para os dois e então
diz:
— Vocês formam um belo casal. Fico
feliz que tenha encontrado alguém tão especial para viver seus dias, Miguel.
— Obrigado, meu bom amigo. Mas me
deixe apresentá-los devidamente. Esse é o meu amigo Camael, um dos melhores
anjos guerreiros que conheci. Em breve será tão forte quanto um Arcanjo. — fala
enaltecendo as qualidades de Camael. — E está é Arádia, a mulher que eu escolhi
para viver minha vida.
— É uma honra lhe conhecer. — fala
Camael apertando a mão dela. — Mas não exagere, ainda falta muito para eu
chegar a tal nível.
— Sempre humilde. — fala Miguel
elogiando o amigo. — Mas posso lhe garantir que sua força já é reconhecida
entre muitas legiões. E depois dessa vitória, grandes histórias serão contadas
sobre você se depender de mim.
— Mas eu nada teria conseguido sem a
ajuda de Arádia. — comenta. — Surya criou um elo entre Arádia e eu, e então
planejamos esse ataque. Asmodeus não esperava que eu surgisse em meio ao raio.
Isso o deixou sem ação e facilitou o meu ataque. Sozinho eu não o teria
vencido. — reconhece.
— A Surya sempre aprontando. —
comenta Miguel. — O que seria de nós sem a ajuda dela sempre que precisamos.
— Mas se quiser me agradecer estou
aberta a este tipo de coisa.
— Surya. — fala Miguel olhando para
o lado.
— Em carne, osso e asas. — sorri. — Fico
feliz que o plano que traçamos deu certo.
— Foi perfeito. — elogia Arádia. —
Obrigada por sua divina ajuda.
— Não precisa agradecer, já
considero você uma grande amiga e detestaria vê-la triste se o Miguel se machucasse.
— Arádia sorri e Surya continua: — Mas também estou aqui por outro motivo.
Houve um conselho no céu envolvendo alguns Serafins e eles chegaram à conclusão
de que será necessário fazer você esquecer sua vida Celestial e também terá de
perder o que lhe resta de poderes divinos. Desculpe-me, mas apenas sigo ordens.
— Eu entendo. Faça o que tiver de
fazer, só não quero esquecer o meu bem mais precioso no momento. — e abraça
Arádia.
— Quanto a isso não precisa se
preocupar. Mas ela também terá de esquecer quem você é. Eu irei criar uma
história para vocês. Tirarei os acontecimentos atuais e irei inserir outros e,
farei com que vocês sigam para outra cidade, provavelmente longe dessas terras.
Garanto que tudo ficará bem.
— Eu confio em você, Surya. — fala
Miguel.
— Se o Miguel confia, eu também
confio. — fala Arádia.
Então Miguel abraça forte Camael e
Surya, e se despede dos dois com lágrimas nos olhos. Surya olha para Camael e
então ergue sua mão direita com a palma aberta e uma luz cegante atinge Miguel
e Arádia por alguns segundos. Quando a luz cessa, Miguel e Arádia estão se
afastando do cemitério e rumando em direção ao horizonte.
— Lá se vai o nosso maior general. —
comenta Camael. — Sentirei falta desse bravo guerreiro.
— Não fique triste, ainda o veremos
antes do Juízo Final. — avisa. — Quem você acha que liderará as tropas
celestes?
Camael sorri e os dois desaparecem
com o sentimento de dever cumprido.
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