Alguns
dias se passaram desde a tempestade e o confronto entre Miguel e Asmodeus no
hospital. Como as pessoas jamais saberão a verdade do que se sucedeu no
hospital, as autoridades relataram como terrorismo a morte de tantas pessoas.
Os dias seguiram e as pessoas continuaram levando suas vidas normalmente,
apenas comentando algumas vezes o ocorrido.
Durante
esse tempo, Miguel retornou para casa e continuou sua vida normalmente,
inclusive levando Jennifer para morar com ele. Entre eles não havia mais
segredos, suas vidas passadas e atuais foram mescladas em uma só. Agora eles
possuíam as lembranças de várias vidas e resolveram finalmente fazer aquilo que
queriam desde quando se encontravam no campanário da Catedral em Florença,
viver suas vidas juntos, mas agora sabendo quem realmente são.
Gabriel
desapareceu, talvez tenha voltado ao Céu, pois sua presença não foi mais
sentida desde aquele dia. Surya e Camael voltaram para o Céu, e um dia antes de
retornarem foram visitar Miguel e Jennifer para se despedirem. Com isso, tudo
aparentemente voltou ao normal.
O dia amanhece chuvoso em Moscou,
mas logo a chuva cessa e dá lugar a um belo sol que brilha no céu e banha o
telhado das casas e o alto dos prédios. Não demora muito para o aumento das
pessoas nas ruas se tornar visível e a correria do dia-a-dia ter início.
Em meio a estas pessoas, uma mulher
madura com aparentes 35 anos de idade, pele branca, 1,70 metros de altura,
corpo ágil e atlético. Com cabelos castanhos encaracolados, tão compridos que
chegam à cintura, olhos verdes e lábios carnudos... Caminha pela rua trajando
um terno branco e calçando sapatos de salto agulha. Em uma das mãos, ela segura
um rolo que ao longo de suas beiradas possui sete selos, e na outra mão um arco
adornado com runas antigas. Ela passa por entre um sorridente e jovem casal de
namorados, que acabam por esbarrar nela, e estes olham para trás e reclamam do
ocorrido. A mulher sorri levemente e o casal começa a discutir. O rapaz num ato
de violência começa a espancar a namorada a socos. Com uma leve olhada para
trás, a mulher sussurra:
— É assim que se conquista, com a
violência e a tragédia.
E então segue seu caminho sorrindo.
Os meses passam e Miguel está
sentado no sofá de sua casa, assistindo televisão.
A âncora do jornal informa o fim da
contagem de votos na Rússia e anuncia o nome do novo primeiro-ministro, ou
melhor, a primeira-ministra, Yulia Romanov. E assim, a imagem corta para um
vídeo legendado do pronunciamento da primeira-ministra russa, uma mulher de
pele branca, olhos verdes, cabelos encaracolados bastante compridos e trajando
um terno branco. As palavras ditas pela primeira-ministra são bastante
agressivas acerca das nações que encabeçam a ONU:
“— Se não agirmos rápido, camaradas, jamais teremos a chance
de ter a verdadeira independência. Desde a Guerra Fria somos observados pelos
EUA e seu clubinho de nações. E como todos sabem, os EUA são a serpente do
mundo, lançando seu veneno e destruindo nações inteiras para saciar seu egoísmo
e massagear seu egocentrismo. E não podemos permitir que isso aconteça conosco.
Custe o que custar.”
A mulher faz uma pausa e continua:
“Nós como nação, desejamos nada mais do que viver em paz.
Nem que essa paz seja conquista a tiros. E juntos, governo e população, podemos
sim conquistar essa paz que tanto almejamos para o mundo. E acredito que essa
será uma prova inegável de que, como nação e como povo, temos capacidade total de
superar os americanos e o restante da Europa. Como líder dessa nação, eu convoco
todas as pessoas desse país a se erguerem contra os Estados Unidos da América e
as nações que o apóiam.”
E assim se encerra o discurso da
russa.
Miguel aperta o botão de mute no
controle remoto e vira-se para Jennifer que está entrando na sala.
— Discurso bastante acalorado esse
dela. — comenta. — Nunca imaginei que os russos iriam um dia se impor dessa
forma.
— Não é o discurso de uma nação, mas
já deu para sentir que isso foi o suficiente para acalorar as disputas e
fomentar a população ao antiamericanismo. — reconhece. — Já presenciamos tantos
discursos assim, que sabemos muito bem qual é o resultado disso.
— A guerra. — acrescenta.
— Exato. Lembra-se, foi a mesma
coisa no Japão, quando guerreamos contra outros clãs devido a um discurso
acalorado de nosso líder na época, não é, Hanzo Hattori?
Miguel solta um leve sorriso.
— E pensar que sou herói por aquelas
bandas. Um contraste bastante interessante com outra época, pois em Constantinopla,
eu era um simples soldado.
— É verdade. — recorda.
— E o interessante é que não consigo
lembrar quem eram o Rafael e o Gabriel quando renascemos no Japão feudal. Eu
tinha muitos conselheiros, mas nenhum amigo. — constata. — Eu nunca tinha tido
a chance de pensar nisso. Estranho, não? Pois nas outras épocas eu consigo
lembrar claramente de todos.
— Eu também não consigo lembrar-me
dos dois. Não importa o quanto eu me
esforce na tentativa, nenhum deles vem a minha lembrança. Pode ser que eles
tenham renascido em outro país ou continente.
— É, pode ser. — concorda
momentaneamente. — E falando nisso, por onde anda o Rafael? Faz mais de um mês
que não o vemos. A mãe dele diz que ele sempre liga para dar notícias, mas
nunca revela onde está.
— Será que assim como nós, ele
também recuperou a memória?
— Pode ser que sim, pode ser que não. —
responde. — Ninguém sabe.
— É... Ninguém sabe. — fala um
Miguel pensativo, que logo se perde em pensamentos.
Apesar de um ser um Arcanjo e a
outra uma deusa pagã, a humanidade está tão incrustada neles que agem como
muitas pessoas. Estão levando suas vidas normalmente. Mas até quando? A guerra
está batendo a porta e aquilo que um dia juraram proteger pode estar próximo do
fim.
Na Itália, próximo ao Vaticano em
Roma, um vulcão extinto a milhares de anos há dias libera do seu interior um fino
fio de fumaça negra. A população da cidade começou a temer que ele se tornasse
ativo e muitas famílias estão abandonando suas casas com tudo dentro e indo
para a casa de parentes em cidades distantes, já faz dias. Muitos dizem que a
culpa do vulcão estar voltando à ativa é a ação do homem contra a natureza e
esta querendo se vingar. Mas a verdade não é essa.
No interior do vulcão, um homem
trajando roupas escuras e um capuz que esconde seu rosto, está de pernas
cruzadas, flutuando sobre um rio de magma fervente. Mas parece não se incomodar
com o calor que faz ali dentro. Sua meditação é tão profunda, que nem a temperatura
de mais de mil graus faz um pingo de suor cair de sua testa.
Mas uma bolha de magma explodindo,
interrompe subitamente a meditação e o homem sussurra em tom melancólico:
— A primeira trombeta está próxima
de ser soada. Assim que o Cavaleiro liberar seu primeiro ataque, os anjos
avisarão que o mundo entrará em contagem regressiva. Uma pena, pois ainda a
tanto para se evoluir...
Mais alguns dias passam, e os olhos do
mundo estão voltados para a Rússia. A primeira-ministra ordenou que os silos
fossem abertos e as coordenadas dos mísseis nucleares fossem alteradas para as
principais capitais da Europa, Irã, Coréia do Norte, China e para Washington e
Nova York nos Estados Unidos. A notícia estampa a capa dos principais jornais
do mundo e é o assunto mais comentado nos telejornais. Aquilo que a população
mundial mais temia, pode estar muito próximo de acontecer, a Terceira Guerra
Mundial. E ao contrário das duas primeiras, esta pode decretar o fim da
humanidade como a conhecemos, ou em sua totalidade.
O dia amanhece em Porto Alegre com
um tom avermelhado no céu, lembrando muito a cor do sangue. Jennifer está
escorada na janela olhando fixamente para o céu, pensando em como tudo chegou
ao ponto em que se encontra. O vento sopra frio, castigando a pele dela e
fazendo seus cabelos remexerem, quase que anunciando a tragédia que se aproxima.
Miguel se aproxima passo a passo e pára ao lado dela, a observar. Jennifer nem
percebe sua presença, está tão mergulhada em seus pensamentos que o mundo ao
seu redor deixou de existir momentaneamente.
— Jennifer... — chama Miguel, não
apenas uma, mas três vezes.
Ela olha para ele como se estivesse
saindo de um sonho, sendo acordada de uma lembrança boa.
— Eu estava perdida em pensamentos,
lembrando de época em que eu corria pelos corredores do Monte Olimpo irritando
o meu pai Zeus. Era uma época tão boa, éramos adorados pelos humanos, havia
festas em nosso nome. Até que um dia um homem veio até nós e nos derrotou,
decretando o fim da era dos deuses e iniciando a era dos Celestiais. Eu penso,
será que algum dia alguém irá destronar esse Deus?
— A história já se repetiu várias
vezes. — conta Miguel. — Cronos derrotou seu pai, Uranos, e a história se
repetiu com ele, quando Zeus o destronou.
— Deus poderia ser parente de Zeus?
— Acho impossível, mas ele nunca nos
contou sua origem. A nossa essência e a dele são diferentes da de vocês. Por
isso acho impossível que tenhamos alguma ligação. Deus é ainda mais antigo que
os deuses pagãos... Desculpe por dizer isso.
— Estou acostumada.
— Eu queria lhe perguntar uma coisa,
depois que a Surya lhe trouxe sua memória de volta, você não se sentiu
diferente?
— Como assim?
— Mais forte, se sentindo uma deusa.
— Não, continuo humana ainda. Nada
mudou em mim. Acho que trazer a nossa divindade de volta não é um dos poderes
dela. — e sorri. — Mas mesmo assim fico feliz por você.
— No nosso próximo encontro com ela,
irei perguntar a respeito disso. Gostaria muito de vê-la como uma deusa.
Rasgando os céus com raios e sacudindo os mares com o mexer das mãos.
— Você está lendo muito livros. Quem
fazia isso era Zeus e Poseidon. Meus poderes eram bem mais acometidos.
— Mas mesmo assim eu adoraria vê-la.
— e abraça-a carinhosamente e os dois ficam contemplando os céus.
Na Rússia, a primeira-ministra sobe
em um palanque na praça central de Moscou, e o povo a ovaciona. Grita seu nome
em couro. A mulher sorri, e com um aceno de mão, o povo silencia.
— É hoje, o grande dia meus queridos
conterrâneos. Hoje mostraremos para o mundo que somos a maior nação da Terra!
Hoje mostraremos do que os russos são feitos! E não é de vodka, mas sim de
alma, coração e amor por seu país! Hoje, iniciaremos a maior ofensiva que o mundo
e Deus já viram. — a mulher vira-se para um grupo de homens fardados e ordena:
— Meus fiéis e queridos Generais, iniciem o bombardeio!
Os Generais batem continência para a
primeira-ministra e cada um pega um telefone celular do bolso e disca um número
secreto.
Com uma ligação de cada General, a
ação militar tem início e os mísseis partem dos silos russos rumo aos céus,
cortando as nuvens como faca quente na manteiga. Os países mais próximos são os
primeiros a serem atingidos, gigantescos cogumelos de energia se formam em suas
capitais e varrem as construções e extinguem qualquer rastro de vida que havia
nas cidades. Sobre os céus do Oceano Atlântico, os mísseis nucleares russos
encontram os mísseis de defesa norte americanos e explosões rasgam a atmosfera
terrestre liberando radiação em níveis destruidores. Infelizmente, nem todos os
mísseis russos são parados e Washington e Nova York deixam de existir, dezenas
de explosões consomem as cidades, as reduzindo a pilhas de cinzas e escombros.
Alguns países que estavam fora dessa
rota de agressão acabam sendo pegos de surpresa. Caracas, capital da Venezuela,
é fustigada por três explosões que arrasam não apenas a cidade, mas as que a
circundam por quilômetros também sofrem da destruição. O Rio de Janeiro, conhecido
como a cidade maravilhosa, passa a não existir mais. O Cristo Redentor é o
primeiro a cair em forma de um monte de pedregulhos e metal retorcido. Brasília
arde em chamas.
Distante das explosões, em Porto
Alegre, Miguel cai de joelhos ao chão e leva suas mãos ao piso gelado.
— O que foi Miguel? — pergunta
Jennifer apavorada quando vê o Arcanjo cair ao chão.
— Eu sinto... Eu sinto as pessoas
desaparecendo feito formigas sendo esmagadas por uma mão gigante. Eu sinto cada
alma ascender aos Céus, ou ir para o Inferno. É horrível essa sensação, é
doloroso demais ser um Arcanjo e sentir isso a cada segundo de sua vida. — e
lágrimas escorrem de seus olhos. — Esse também foi um dos motivos que me
fizeram deixar de ser um Celestial. Eu sempre odiei ver os humanos sofrerem e
não poder fazer nada por eles.
— Mas agora você pode! — informa
Jennifer determinada e recuperada do susto anterior. — Você agora é metade
homem e metade Arcanjo! Vamos salvar essa nossa metade e não deixar morrer
esses que nos deixaram tantas lembranças em nossas vidas passadas.
Miguel suspira profundamente, se
ergue do chão, e então profere algumas palavras:
— Abrace-se firme em mim. Iremos
voar para Moscou agora mesmo! Irei impedir essa humana de continuar com essa
barbárie! Chega de ficar omisso perante a tanta destruição! Não sou um covarde
e muito menos um ser sem coração. Eu sou Miguel, o General das hostes divinas e
devo dar o exemplo! Vamos acabar com esse reino de terror!
Nisso, uma luz brilhante surge no
céu e três asas batem em sincronia perfeita criando um vendaval por onde passam.
Como um raio, a Querubim Surya aterrissa em frente aos dois e sem rodeios
avisa:
— Miguel, o primeiro Cavaleiro do
Apocalipse já caminha sobre a Terra! Ele só está aguardando o primeiro selo ser
rompido para cobrir a Terra com desgraças. Ele é o anticristo, a quem autoridade
vai ser dada para dominar todos que a ele se opõem. Ele tem o poder de fazer as
pessoas se tornarem violentas e é o precursor para a chegada do segundo
Cavaleiro.
— Quem o enviou? Lúcifer? —
pergunta.
— Ninguém. — responde. — Ele não
possui líder ou lado. É uma força destrutiva da natureza. Criado especialmente
para este evento. Mas ele pode ser parado. Existe um artefato que pode barrar o
avanço dos Cavaleiros. Os arautos da destruição podem ser destruídos.
— E que artefato seria esse? —
pergunta curioso.
— O Cubo de Metatron. — responde
Surya.
— Metatron? O Serafim desaparecido?
— Isso mesmo. — confirma. — Ele
criou esse cubo a partir da Fruta da Vida. E assim como pode trazer a vida, também
pode trazer a morte para qualquer ser vivente, Celestial, Infernal ou qualquer
um dos arautos. — explica. — Diz a lenda que além da Fruta da Vida, Metatron
usou parte de sua alma para isso. Ele era o único Serafim a possuir uma alma.
Alma essa dada pelo próprio Altíssimo como um presente por sua amizade e dedicação.
Ele desvendou o segredo da alma humana e os mistérios do Universo. Diz-se que
Metatron é tão poderoso quanto Deus, mas a milhares de anos ele está
desaparecido e ninguém sabe seu paradeiro. Nem mesmo Deus sendo onisciente e
onipotente conseguiu encontrá-lo.
— E por que acha que vamos
encontrá-lo se nem mesmo Deus o encontrou? — pergunta Miguel.
— Não é Metatron que vocês devem
procurar, mas sim o cubo. Ele foi jogado aqui na Terra e até hoje permanece
oculto. Mas não se preocupem, eu irei ajudá-los a encontrar.
Como um raio, Raguel pousa ao lado
deles e diz:
— Eu também irei ajudar. Desejo
muito a destruição desses arautos.
— Obrigado. — agradece Surya.
Raguel apenas sorri.
Lembrando a conversa que teve
anteriormente com Jennifer, Miguel olha para Surya e pergunta:
— Porque os poderes de deusa da
Jennifer não foram trazidos a tona também?
— Não foram? — pergunta Surya
confusa. — Mas eu os liberei também.
— Mas eu não senti nada de
diferente. — fala Jennifer. — Ainda me sinto completamente humana. E ontem
mesmo me cortei no dedo. Algo que não aconteceria se eu tivesse minha divindade
de volta.
— Estranho. Mas prometo que irei
procurar os melhores sábios do Paraíso e perguntar para eles como resolver
isso.
Então Miguel dá as costas a elas e
em tom angelical diz:
— Agora eu irei parar aquela mulher.
Ela já causou danos demais a esse planeta, e se continuar assim, não haverá
mais salvação. Vamos Jennifer.
— Calma! — fala Surya colocando a
mão sobre o ombro dele. — Aquela mulher é um dos Cavaleiros do Apocalipse, ela
é a Conquista, achei que você já tivesse pressentido isso.
— Não, eu não pressenti nada. A aura
que emana daquela mulher é puramente humana, não há nada divino nela. — revela.
— Mas então se ela é quem você diz, eu posso destruí-la com um estalar de
dedos. — afirma. — Não podemos perder essa chance! Se ela ainda não se tornou o
tal Cavaleiro, ainda pode ser destruída pó nós.
— Você tem razão. — concorda Surya.
— Vão, que logo encontro vocês. Irei ao Paraíso tentar descobrir como liberar a
divindade de Jennifer. E por favor, cuidem-se. — suas asas se abrem e num
impulso sobre-humano, ela desaparece em meio as nuvens.
Miguel abraça forte Jennifer e seu
corpo começa a flutuar acima do chão. Raguel o fita com admiração e diz:
— Eu irei com vocês. Qualquer coisa
eu estarei lá como apoio.
Miguel assente com a cabeça e os
dois batem suas asas e saem voando dali a uma velocidade supersônica.
No vulcão, o homem levita em pé
sobre o magma e um lindo par de asas brancas surge em suas costas.
— Chegou o momento. — profere.
Com um simples movimento, ele rasga
o ar e sai de dentro do vulcão deixando um rastro de magma, que se espalha por
sobre a boca do monte.
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